Foi você quem me fez assim

Bortoloti e as teclas da máquina de escrever

Em meados da década de 90, as aulas de datilografia na Industrial, em Pirajuí, aconteciam em duas turmas no período da tarde. Industrial é o apelido da Escola Estadual Profª Maria Angélica Marcondes, colégio que, no passado, marcou época na cidade pelo forte ensino técnico.

A eficiência do curso que ensinava à garotada o manejo das máquinas de escrever já começava a ser questionada. Se há poucos anos, a habilidade era prioritária para “arranjar um emprego de escritório”, já estávamos em uma época que os pais matriculavam os filhos na modalidade porque… “Ah! Porque é bom fazer, né?”

A sala de datilografia da Industrial era impressionante. Um grande espaço com mesas pesadas, dispostas em fileiras, sustentando as engenhosas rainhas do espetáculo: as máquinas de escrever – se não me engano, eram todas Olivetti.

Início de tarde, sol quente como só os verões pirajuienses sabem proporcionar, todos sentados em frente às máquinas, curiosos como a criança que vê pela primeira vez o piano. Entra o professor, alto, com cabelos penteados para trás, totalmente brancos, com um andar pesado, uma camisa clara de botões e calça escura (visual que o acompanharia o curso inteiro) e sob o braço, uma dessas pastas feitas de papelão, com elátiscos.

Oswaldo Bortoloti deixou a pasta sobre sua mesa e começou ali mais um ciclo bem peculiar – que ele dominava. Em alguns meses, todos sairiam dali datilógrafos. O brinquedo em que adorávamos bater os dedos desconexos se transformaria em instrumento de trabalho, de onde se produziriam formulários, boletins de ocorrência, relatórios, enfim… coisas de gente grande. A missão do professor era clara: naquelas aulas vespertinas, ele transformava meninos em homens.

De voz grave, mas com entonação doce, ele explicou o que era a máquina de escrever, suas peças, a ordem do teclado – se não me falha a memória, fez todos dizer em voz alta “A, S, D, F, G…”

E soltou uma frase que ele repetiria no decorrer dos meses, dia após dia, diante dos alunos ansiosos: “Tem que ser tudo devagar, com calma, não adianta você aprender a dirigir um fusquinha e já sair guiando uma Ferrari”.

Com o passar do tempo, os alunos melhoravam e os exercícios se complicavam cada vez mais. As aulas iniciais, que tinham uma barulheira digna de um show de horrores, passavam a operar mais ritimadas. Sem demonstrar muito abertamente, o semblante do professor Bortoloti ficava mais leve, as coisas estavam caminhando bem.

Quando terminavam os 60 minutos de aula não havia sirene ou nenhum sinal sonoro, mas a voz do mestre, em um jeito único – que chegava a ser engraçado pela forma lenta como era dita – de encerrar os trabalhos: “Vaaaamos parando”.

Poucos anos depois dessa turma de datilografia o curso deixou de existir. O professor também já estava próximo à aposentadoria – tinha transmitido conhecimentos em várias aulas para gerações e gerações, inclusive na contabilidade.

Recebi com tristeza a notícia de sua morte, essa semana. Por outro lado, veio à memória cada aula lá de longe, dos tempos da datilografia da Industrial. Imaginem só quantas pessoas tiveram a mesma recordação nos últimos dias. Uma infinidade de alunos de Pirajuí, Reginópolis, Cafelândia, Presidente Alves, Pongaí, Uru e por aí vai, que, assim como eu, desempenham sua profissão, diariamente, graças aos métodos e à paciência do Bortoloti.

Obrigado, Professor. E, é claro: “Vaaaaamos parando”.

 

foto: acervo pessoal da família Bortoloti

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