Se você ainda não conhece o escritor norueguês Karl Ove Knausgård, dê um pulo aqui nesse texto maravilhoso do Risca Faca que você sai inteiradaço. Agora, se você já sabe de quem estou falando… VEM COMIGO!
Saímos da Festa Literária de Paraty (Flip 2016) umas 15 para as oito da noite, Karl Ove já tinha palestrado, autografado uma pá de livros (até obra da Zibia Gasparetto ele havia assinado) e já era hora de irmos embora. Nós tínhamos chegado à cidade pela estradinha nova de Cunha, mas Deus me livre, estava muito estreita, cheia de curvas, com umas lombadonas, você imagina para um sujeito acostumado com as estrada da Noruega… Ele ficou quase louco. E a gente tinha batido um daqueles PF na beira da estrada (arroz, feijão, farofinha de milho, bife e ovas), aquilo nas curvas começou a dar um revertério, ainda bem que eu tinha um Atroveran™ na bolsa senão esse homem ia vomitar e, pra narrar isso no livro, era de 60 páginas para cima.
Como a experiência foi trágica na ida, resolvemos voltar por Ubatuba. Meu 3G não pegava nem por decreto na serra e, sem o Waze, acabamos errando aquela entradinha por Taubaté. Karl Ove estava puto, nunca gostou de seguir pela rodovia beira-mar até Caraguatatuba. “É quase tudo a 40 km/h, fora quando atravessa banhista”, ele reclamou. Fica frio, meu sobrinho, apaziguei. Em pleno mês de julho, naquele frio, para estar em Caraguatatuba ou era morador local ou aqueles sujeitos em começo de namoro que estão meio sem grana e, ao invés de Campos do Jordão, levam a mina pra praia. “Daí no Instagram ficam aquelas fotos acinzentadas”, observou Knausgård. “É desolador”.
Karl Ove pediu para que eu parasse o carro. Queria passar no supermercado Shibata™, em Caraguá, antes que pegássemos a Tamoios. Aproveitei para dar uma mijada, enquanto ele pegava uma daquelas cestinhas de compra menores, de carregar no braço. Vi que ele logo botou um refri de 2 litros, já pensei, esse aí não manja nada de mercado, daqui a pouco o braço ia ficar marcado, com o sangue preso. Ele comprou iogurte grego, batatas, um pouco de quiabo, alface crespa, um pão pullman e requeijão light. Depois o requeijão ele acabou devolvendo, achou que era um preço, mas, ao chegar no caixa viu que havia se confundido. Fez a patinadora ir até a gôndola e resolveu não pegar. Tentei argumentar, disse que eu pagaria a diferença. Ele enfiou um dos quiabos na minha narina. No que a moça do caixa disse, “ainda bem que foi na narina, Senhor. CPF na nota”?
Um caminhoneiro passou do outro lado da rodovia e me deu um sinal de luz. Expliquei para Karl Ove que, na estrada, quando damos duas luzes de seta para a esquerda, o caminhoneiro, solitário, costuma revidar, respondendo em sinal de simpatia com o mesmo movimento – a não ser que esteja acompanhado na cabine (com alguma mulher da estrada ou um carona carente), nesses casos, disse, é só beijo, mordida, passação de mão e “trocação de marcha” o caminho todo. “Que interessante, como deve ser a vida na estrada? Com a luz do luar refletida no painel. Com o chaveiro de algum santo ou crença dependurados no retrovisor. Com os olhos imóveis focados na…” Eita porra, para com essas descrições. Eu estou conversando com você aqui no carro, não sou a página de um livro. Ele sorriu. E em seguida enfiou um outro quiabo, dessa vez em minha orelha. Meu tímpano chegou a estalar.
Estávamos quase chegando. Passávamos por Guarulhos e eu ia pegar a Salim… Karl Ove interrompeu meus pensamentos, com aqueles cabelos brancos e todo o lirismo do seu olhar: “Não é melhor tocar pela Marginal Tietê mesmo, até a ponte do Pacaembu?”. Tem razão, cara. Em Estocolmo você se atrapalhava todo, mas está bem de São Paulo hein?
Mais uma vez me pediu para sair do caminho. Queria entrar em Guarulhos, pois gostaria de ver uns conhecidos no Parque Cecap. Porra, Karl Ove, temos que chegar logo no hotel em São Paulo. Amanhã você tem uma agenda cheia de compromissos. Foi como se estivesse falando para um dos seus seis livros de 500 páginas cada. Em vão. Paramos o carro do lado de fora do Cecap. “Ontem mesmo levaram o carro de uma pessoa aí nessa curvinha que vocês deixaram o seu”, me avisou um dos porteiros que trocava de turno. Karl Ove do céu, nós vamos arriscar mesmo? Até eu explicar para a seguradora o que eu estava fazendo com você aqui. Ele já estava do lado de dentro dos condomínios. Caminhou até um dos blocos e subiu dois degraus. Daí esticou sua perna esquerda e fingiu amarrar os cadarços, na verdade, disfarçou para limpar a merda de cachorro que havia pisado. Deu umas duas raspadas com a sola no degrau azuleijado e, quando finalmente percebeu que havia mais sujado que limpado, deu um sorriso amarelo para mim e disfarçou: “eu pisei numa manga”. Como trabalhei muitos anos na roça (sangue italiano), logo de cara sabia que não era época de manga porra nenhuma, sem falar que Guarulhos não tem tantas mangueiras assim. Umas pessoas o esperavam em um dos quartos, um sujeito de cabelo raspado e camiseta do Corinthians lhe abraçou forte, uma moça de uns 30 anos logo chegou, com um bebezinho no colo. “Quanto tempo ele já está?”, perguntou o escritor. “Três meses e meio”, ela disse. “Hummm então já está nascendo dentinho, né? Com a Vanja foi terrível ela chorava o tempo todo”. A moça concordou. Ela deixou o bebê no colo do visitante nórdico e foi até o forno, de onde retirou uma assadeira redonda com torta de frango. “Come Karl Ove”. Ele negou. “Come rapá, isso aqui é comida caseira, não aquelas porcaria de hotel”, disse o corinthiano, que naquele momento jogava um Candy Crush danado. Ele se alimentou, tomou um gole de Coca-Cola, estava trincando de gelada, subiu aquele gás que chegou a doer a testa dele. “Garrafa de vidro né, tem muito mais gás”, Knausgård observou. “Posso usar o banheiro?”, ele disse. “Claro”.
Quando ele deixou a sala e foi ao toalete, fiquei pensando comigo mesmo. Caramba, quase não permiti que Karl Ove entrasse nesses amigos aqui de Guarulhos. Mesmo ele sendo meu truta, não havia percebido que, tirando essa oportunidade, eu estava censurando a sua principal matéria-prima: a vida das pessoas. Que sujeito único, sensível e espetacular! Por essas e outras que sou fã incondicional! “Karl Ove, está tudo bem aí? Só não use a duchinha higiência pois ela está estragada e vai vazar água por todo o banheiro”, alertou a dona do apê.
“Ok”, ele disse.
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Montagem de capa com ajuda do também meu truta @guimedeiros.