Foi você quem me fez assim

Antonio Marra jardineiro: zelava por Pirajuí

Por Marcus Liborio

Vivendo em Pirajuí, nas décadas de 1980 e 1990, era comum passar pelas proximidades da Igreja Nossa Senhora Aparecida e ver uma figura marcante. De ombros arqueados, apaixonado pela arte da jardinagem e bastante religioso, é um dos personagens que compuseram a história da sociedade pirajuiense – figuras essenciais para o funcionamento da cidade e que, assim, o fizeram por gerações e gerações. Por isso, inclusive, são inesquecíveis. 

Tive o privilégio de ter essa pessoa em meu seio familiar. Ele é o meu avô materno, Antonio Marra jardineiro. É com enorme prazer que narro um pouco da história do jardineiro mais caprichoso que tive a honra de conhecer – por vezes sisudo, mas com um coração do tamanho do amor que a família Marra teve e ainda tem por ele. 

Nada mais justo prestar essa homenagem em nome dos filhos, irmãos, netos, bisnetos, sobrinhos e quem mais se identifique. Tenho certeza que muitos de Pirajuí se recordam do seo Antonio Marra. Quem não se lembra ou não chegou a conhecê-lo, convive com parte do legado que ele deixou, sem mesmo saber. 

Explico. Várias árvores que compõem um dos ambientes mais agradáveis da cidade, a praça Dr. Pedro da Rocha Braga – entre a prefeitura e o Fórum – foram plantadas e cultivadas por meu avô. Todo aquele verde, que proporciona paz e calmaria em meio à rotina dos pirajuienses, já inspirou casais apaixonados ou serviu de cenário para books fotográficos, vídeos e eventos marcantes.

Além de prestar serviço de jardinagem para o município, por décadas, Marra era muito requisitado por famílias que queriam dar um trato no jardim de suas casas. Tanto é que, apesar da idade avançada, meu avô esbanjava saúde e ainda botava a mão na massa (ou melhor, na terra) até pouco antes de morrer, aos 93 anos. Era magistral o que o “véinho” fazia com o cartão postal das residências. 

E o peso de quem já havia vivido mais de nove décadas não era motivo de desânimo e intimidação, principalmente quando o assunto era servir a Deus. Seo Antonio Marra frequentava as missas aos finais de semana, sem falhar. Chegou a cantar no coral da igreja – música era outra afinidade dele. 

Meu avô deixou grandes exemplos para a família. Seu legado é grandioso e baseado em três características que me enchem de orgulho: trabalhador, honesto e temente a Deus. 

antonio marra jardineiro
Fevereiro de 1932: casamento de Antonio Marra com Maria Piola

Descendência italiana

Dizem que a religião e o dom para a música têm ligação com a sua descendência. Os pais do meu avô, Giovanni Michele Marras e Margherita Rosa vieram para o Brasil de navio. 

Saíram de Sardenha, na Itália, e desembarcaram no Rio de Janeiro, em 1897. Aliás, diz a história, viajaram na mesma embarcação que trouxe para cá os avós da atriz consagrada Fernanda Montenegro – eles eram, inclusive, da mesma cidade. 

Chegando em terras brasileiras, meus bisavós foram para uma hospedaria em Juiz de Fora, Minas Gerais, e se estabeleceram em Campos Místicos que, à época, era distrito de Ouro Fino. Hoje, é a cidade de Bueno Brandão.  

Meu avô era o caçula de sete irmãos. Duas meninas, Bonacatta e Liberata Marras, nasceram e morreram ainda na Itália – a primeira em 1890 e a segunda, em 1891. Na viagem, meus bisavós trouxeram o casal de irmãos Maria Antonia e Giu Maria Marras – este último faleceu ao chegar no Brasil.

Em Campos Místicos, a família cresceu: nasceram João, Salvador e, em 20 de janeiro de 1908, Antonio Marra jardineiro, personagem desta narrativa. Um detalhe: não sei explicar o motivo, mas, no Brasil, o sobrenome foi modificado de Marras para Marra. 

Meu avô Antonio tinha apenas 5 anos de idade quando perdeu o pai. Com a morte do patriarca, a mãe, ele e os irmãos se mudaram para o Interior de São Paulo, em busca de trabalho na roça. Destino: Pirajuí. 

Famoso por ser o maior produtor de café do mundo, o município cujo nome significa Rio do Peixe Dourado era a esperança de dias melhores para a família Marra. Na lida no campo, meu avô descobriu a aptidão com as plantas. Mal sabia ele, naquele momento, que a experiência lhe renderia a profissão com a qual sustentou a família e o fez tão querido entre os pirajuienses. 

Inteligente, aprendeu a ler e a escrever sozinho, sem ajuda de professor. A música foi outra aptidão descoberta quando vivia no campo. Autodidata, começou a tocar violão nos eventos da fazenda. 

Meu primo Claudio Rogério, hoje cirurgião-dentista em São Paulo, e eu herdamos de nosso avô o dom da música. Rogério fez conservatório de piano e tocava teclado em banda de baile. Também dava aulas de violão e teclado em casa. Hoje, além de dentista, é DJ. 

Já eu parti para as batucadas. Assim como meu avô, também aprendi a tocar de ouvido e infernizei muito os vizinhos ao som da bateria montada em meu quarto. Para a sorte deles, atualmente, toco somente fora de casa: nos ensaios e em shows pela cidade e região.

antonio marra jardineiro
Filho João Marra, Antonio, Maria com o neto Wagner no colo, Cléria com a filha Mônica e Maria Inês

Jardinagem: uma paixão

Tem uma coisa que define bem o seo Antonio Marra jardineiro: o trabalho. Dedicou a maior parte de sua vida aos cuidados com a terra e às plantas. Da roça e plantio de café, se tornou funcionário da Prefeitura Municipal de Pirajuí, em junho de 1936, contratado para fazer a manutenção dos jardins da cidade. 

A praça Doutor Pedro da Rocha Braga, que fica entre o prédio do Executivo e o Fórum, foi praticamente esculturada pelas mãos dele. Sinto-me feliz e orgulhoso quando passo pelo jardim e olho toda exuberância do local, fruto do talento e dedicação de meu avô. 

Depois que se aposentou, seo Antonio Marra passou a cuidar do jardim de muitos moradores da cidade. Alguns faziam questão de contratar os serviços dele, pois sabiam de sua competência e capricho com as plantas. 

Mesmo idoso, não parou de trabalhar. Sua vida era agitada. Além da jardinagem, ele cantava no coral da igreja. Aos finais de semana, sua presença nas missas era sagrada – com o perdão do trocadilho. 

O exemplo de homem religioso foi seguido pelos filhos. Minha mãe e minhas tias raramente passam uma semana sem ir à missa. Família temente a Deus, algo que sempre esteve bastante presente entre os Marras. 

Família

Na igreja, inclusive, seo Antonio soltava a voz em momentos de oração e fé através da música. Como já citado antes, a aptidão musical da família começou com o meu avô, que animava os bailes da fazenda ao som de seu violão. Foi nessa época, inclusive, que ele conheceu Maria Piola, com quem se casou em fevereiro de 1932. 

Tenho boas lembranças da minha avó. Mulher forte e batalhadora, assim como o marido dela. Os dois constituíram uma linda família, formada por sete filhos (três já morreram), nove netos e cinco bisnetos. 

As duas primeiras filhas chamavam-se Maria Aparecida e Maria das Dores. Não sei qual das duas, mas uma delas morreu com 1 ano e meio e a outra teve somente seis meses de vida. 

O terceiro é o meu tio João, hoje com 85 anos. Depois dele, meus avós tiveram outro menino, José, que viveu apenas 24 horas.  

Hoje, portanto, são quatro filhos vivos do casal Antonio a Maria. O mais velho deles, meu tio João se mudou ainda jovem para São Paulo, para trabalhar em uma fábrica de carros. Na Capital, conheceu a esposa, Cléria, com quem teve três filhos: Mônica, Wagner e Fabiana (na ordem de idades). 

Infelizmente, minha tia Cléria nos deixou no início do ano, vítima da Covid-19. Meu tio João, claro, sentiu o baque, mas segue tendo apoio dos filhos na caminhada. Somente em 2021, veio duas vezes a Pirajuí, sua Terra Natal, para relembrar os bons tempos de juventude. 

Na lista dos filhos vivos do patriarca Antonio Marra jardineiro, a próxima é a minha tia Rosa, hoje com 81 anos de idade. Ela tem uma história bastante marcante na Cooperativa de Café de Pirajuí, onde trabalhou por muitos anos. 

Saiu de lá para dar aulas em escola infantil da cidade e, atualmente, está aposentada e mora em Bauru, em frente a uma igreja. Basta atravessar a rua para assistir uma missa. 

Ela se casou com o policial militar Claudio Teodoro, que nos deixou muito cedo, em 2002, aos 54 anos. Meus primos Cláudio Rogério e Tatiana são frutos do casamento. O primeiro, como eu já citei, herdou de seo Antônio Marra o dom para a música. 

A Tati também é adepta à arte. Cursou Rádio e TV e hoje mora em Bauru, com a mãe, e trabalha na paróquia da igreja que fica em frente à residência delas. É a característica religiosa de meu avô ainda presente na família. 

Outro exemplo de religiosidade ainda em vigor vem da minha tia Maria Inês, 73 anos, a terceira dos filhos vivos de seo Antônio Marra. Ela está sempre presente às missas, seja em Pirajuí ou em Bauru, onde mora, atualmente. 

Muitos nascidos na década de 1980, talvez, devam se lembrar da professora Maria Inês. Por vários anos, ela deu aulas de Português e Inglês na Escola Estadual Doutor Alfredo Pujol. Fui aluno dela e tinha que me comportar para não levar bronca de minha mãe em casa. 

Minha tia também se tornou diretora de escola. Atuou não somente no Pujol, mas em outras instituições de ensino da região. Hoje, é diretora em uma escola de Bauru e está prestes a se aposentar. 

Ela é casada com meu tio Edson Faria, conhecido em Pirajuí pelo apelido de “Jovem” (pois é assim que ele chama todo mundo). Os dois tiveram duas meninas: Vivian e Vanessa. Ambas se formaram em Direito e trabalham juntas no setor de RH de uma empresa de Agudos. 

antonio marra jardineiro
Família Marra reunida em fotografia recente: faltam apenas dois netos na imagem

Por fim, minha mãe, Ana Maria, é a caçula. Tem 70 anos. É a única que permanece em Pirajuí. Ela também chegou a ser professora. Deu aula na antiga Escola Comerical “29 de Março”. Trabalhou com a irmã mais velha na Cooperativa e se aposentou como funcionária pública estadual, após atuar por 20 anos no setor administrativo da Penitenciária I da cidade. 

Em dezembro de 1980, se casou com Edvaldo Liborio. Ele também se aposentou na unidade prisional onde ela trabalhou, porém, como Agente de Segurança Penitenciária (ASP). 

Infelizmente, meu pai nos deixou em maio deste ano, aos 69 anos, vítima de um câncer. Gosto de dizer que ele cumpriu (muito bem) a sua missão por aqui. Além de mim, que sou o mais velho, meus pais sempre cuidaram de meu irmão mais novo, Luís Henrique, hoje com 34 anos. 

Ainda nos primeiros meses de vida, ele foi diagnosticado com síndrome de West, uma doença rara caracterizada por crises epiléticas frequentes. Meu irmão não anda e não fala. É como se fosse um bebê – depende de terceiros para tudo, como se alimentar, tomar banho etc. 

Por isso, afirmo que meu pai cumpriu muito bem a sua missão neste mundo: cuidou de um anjo que temos o prazer de conviver, diariamente. 

Moramos na mesma casa, em Pirajuí. Sou jornalista e, por isso, o Marcelinho Daniel, criador do Homem Benigno, me deu espaço para escrever um pouco da história de meu avô Antonio Marra jardineiro – que, inclusive, também cumpriu a sua missão na Terra com maestria. 

Filhos de Antonio Marra: Maria Inês, João, Ana Maria e Rosa

Bisnetos

Meu avô conheceu apenas dois dos cinco bisnetos. O primeiro deles é o Victor, hoje com 26 anos, filho da minha prima Fabiana, a caçula dos meus tios João e Cléria. Pouco tempo depois, o Victor, que trabalha com Tecnologia da Informação (TI), ganhou um irmão, o Arthur, que está com 23 anos. O mais novo logo ganhará os céus, pois se prepara para tornar-se piloto de avião. 

Uma pena que seo Antonio Marra jardineiro não conheceu os demais bisnetos: Maria Alícia, hoje com 16 anos, e Valentina, 11 anos de idade. Elas são filhas do meu primo Wagner, o segundo filho do casal João e Cléria. 

Wagner sempre morou em São Paulo e, neste ano, visitou bastante Bauru e Pirajuí. Pudemos confraternizar com quase toda família reunida – respeitando as regras sanitárias de prevenção à Covid-19, claro. 

O mais novo bisneto do seo Antonio Marra não tem nem 1 ano de vida. Filho da minha prima Vivian (a mais velha da tia Maria Inês), o Abdala, ou Abdalinha para os mais íntimos, nasceu em abril deste ano. É o xodó da galera e sempre rouba a cena em encontros de família – óbvio, né?  

Antonio Marra e sua esposa Maria em celebração a Bodas de Ouro, em fevereiro de 1982

Morte de Antonio Marra jardineiro

Meu avô materno morreu no dia 25 de junho de 2002. Sofreu uma convulsão, adoeceu e vimos a saúde dele piorar gradativamente. Entre altos e baixos, foram cinco meses até seo Antônio Marra precisar ser internado. 

No leito do hospital, chamava o tempo todo pelo filho mais velho, meu tio João, que já morava em São Paulo. Ele atendeu ao chamado do pai e, num domingo, o visitou na Santa Casa de Pirajuí. 

Meu avô morreu dois dias depois – é como se estivesse esperando apenas a despedida do único filho homem (que sobreviveu) antes de partir deste mundo para a casa de Deus, onde tenho certeza que olha e cuida de toda a família Marra, com o mesmo carinho e dedicação que o fez em vida.

Honesto, temente a Deus, caprichoso com as plantas, apaixonado por música e o mais importante: amava a sua família. A trajetória de meu avô Antonio Marra nos enche de orgulho por ter sido bela, humilde e amorosa. 

Marcus Liborio é jornalista, foi repórter diário do Jornal da Cidade de Bauru e, atualmente, atua na comunicação institucional da Secretaria da Administração Penitenciária, do Governo do Estado de São Paulo

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