Antes mesmo de poder ter a certeza que a série documental A Máfia dos Tigres é boa, não pude deixar de lembrar de uma experiência que vivi no longínquo 2012.
Quando pensamos em 2012, literalmente, parece que estamos falando de outro planeta, não é mesmo?
Em 2020, a Netflix lançou, em meio à quarentena por conta do Coronavírus que atinge todo o mundo, a série documental A Máfia dos Tigres.
Oito anos antes dessa van premier, eu estava perambulando por um dos calçadões do centro comercial de Buenos Aires, procurando algum passeio “cata-turista”, os quais geralmente me delicio e sou o público-alvo perfeito.
Era uma época em que a cotação do real versus peso argentino estava uma delícia – comíamos bem e muito, carne pra caramba, vinho tinto, doce de leite vinha em carriolas. Quem sofria depois era a estrutura sanitária da rede hoteleira portenha.
Acho que ainda não existiam os Airbnb da vida, senão ia ser uma dinheirama em encanador e desentupidor para os donos das espeluncas.
Encontramos alguns estudantes brasileiros de medicina que, como contaram, viam na venda dos pacotes turísticos uma fonte de renda durante o curso.
Tinham uns trocentos folders em vários idiomas, com fotos, atrações, preços e brindes. Um deles chamava mais a atenção. Umas fotos com jeitão de amadoras, com pessoas sorridentes debruçadas em animais.
Não estamos falando de qualquer tipo de animal – durante muito tempo, para você ter uma ideia, o finado Zoológico de Pirajuí manteve um leão (Major) e, ao lado, um monte de galinhas, galos, codornas. Não! O folder em Buenos Aires mostrava turistas agarrados em tigres gigantes, ursos e um imponente leão!
Até então, nunca tinha ouvido falar do Zoo de Luján – e muito menos da cidade Luján. O Zoo é um imenso santuário de felinos, cuja atração é a possibilidade de ficar lado a lado com os animais selvagens.
A cidade de Luján fica a uns 100 km de Buenos Aires, pelo que me lembro, tem 100 mil habitantes e possui uma catedral gigante, tal qual a Basílica de Nossa Senhora, em Aparecida (SP), dedicada à Virgem de Luján, que recebe muitos turistas católicos.
Soube bem depois, em solo brasileiro, que Luján também está intimamente ligada à minha história. É a cidade que recebeu meu bisavô, Lídio Calzetta, vindo da Itália. Morou por anos lá – seu irmão caçula, Giovanni, nasceu em Luján. Tanto que, em conversas com minha amada e saudosa avó Amélia, soube que, no curto período em que meu biso pode viver em Pirajuí, tinha o apelido de “Argentino”. Mas enfim, isso é outra história.
A série A Máfia dos Tigres é boa?
Sob título original Tiger King, a série documental tem aquela pegada dos excelentes docs de crimes que a plataforma vem apresentando – como o seminal Making a Murderer, por exemplo.
No centro da trama estão os exóticos colecionadores de animais selvagens dos Estados Unidos – em especial, de grandes felinos.
É possível concentrar a saga na relação de ódio entre um dono de zoológico, Joe Exotic, e da defensora dos animais Carole Baskin.
A equação é simples: um coleciona animais e os mantém em cativeiro, tendo como forma de financiamento o uso de filhotes para que sejam acariciados por milhares de turistas.
Ela faz o caminho oposto. Luta pelo fim desse tipo de modelo de negócio e mantém, em organização própria, um santuário de felinos que, também, é aberto ao público.
Nada é tão simples nessa história. Os dois lados possuem pontos fracos e incoerências que são muito bem explorados em cada um dos episódios da série.
É claro que, para não dar muitos spoilers, é importante entender que essas desavenças passam por ofensas, crimes ambientais e flertam com uma tentativa de homicídio.
Os malucos e seus bichos
Para compor a complexa teia do embate entre Joe Exotic e Carole, Máfia dos Tigres abre o baú da complexa personalidade dos seres humanos que dedicam sua vida para colecionar e se relacionar intimamente com animais selvagens.
São pessoas que, de forma impressionante, quebram a barreira da natureza e passam a interagir com tigres enormes, fazer carinho, alimentá-los na boca, dar broncas e, vez ou outra, levar umas abocanhadas.
Se as fotografias dos visitantes são feitas com filhotes e respeitam normas de segurança, na mão dos donos, não há limites. Eles estão nesse meio por terem a certeza de que amam e são amados por essas feras que dilaceram bois com meia dúzia de mordidas.
Impossível não lembrar de O Homem Urso (2005), do Werner Herzog, em que o sujeito mete a senha do louco e vai para a floresta dormir de conchinha com ursos cinzentos.
E aqui reservo uma atenção especial a um personagem secundário, mas que impressiona pela sua biografia, que é Doc Antle, um sujeito que fez do seu maravilhosos zoológico uma espécie de culto – tanto que se auto-proclamou o Mahamayavi Bhagavan “Doc” Antle –, com leis próprias, onde vive cercado por suas várias mulheres.
Antle foi o responsável pelo “elenco” de clássicos como Ace Ventura – Detetive de Animais e toda aquela bicharada que aparecia.
O animal e a selfie
No Zoológico em Luján encontrei a estrutura bem parecida com alguns dos “santuários” exibidos em a A Máfia dos Tigres: uma grande fazenda, rodeada de alambrados e jaulas, chão de terra – lembrem-se que essa é uma lembrança de oito anos atrás.
Ao meu lado estavam uns 15 turistas, liberados aos poucos, já que era preciso uma organização para que pequenos grupos entrassem nas jaulas.
Aliás, nessa minha experiência a expressão “cheiro de jaula” foi materializada com sucesso. Os funcionários do local comentavam que o dia estava tranquilo pois, se não me engano, era uma terça-feira.
Os tigres eram mais brincalhões e exigiam certa atenção – “cuidado com o cabelo comprido e blusas dependuradas”, alertavam o tempo todo. O leão era maravilhoso, gigantesco, é do tamanho de um Fiat Uno, mas estava meio cabisbaixo, fedido e com a juba meio úmida. Devia estar com pressa e não deu tempo de secar.
Os mesmos trabalhadores ficavam, o tempo todo, reforçando que os animais não foram medicados ou receberam nada que “baixasse a bola” deles. Eram dóceis pois haviam crescido ali, entre humanos e cachorros – acho que contei uns 30 cachorros. Uns até mais bravos que os animais selvagens. Vai saber…
Enfim… Achei um barato, tirei trocentas fotos, o Facebook era bem mais sussa naquela época e, ainda assim, bombou!
Mas, confesso, me arrependo um pouco dessa experiência.
Além de toda a narrativa criminal, A Máfia dos Tigres é boa por trazer essa reflexão de forma bem certeira. Quando quebramos essa barreira selvagem e vamos para o contato com o animal, não estamos lá por ele – é a #selfie com ele que vale a pena.
Ou seja, o animal ali é só um cenário, o que está valendo mesmo nesse jogo de cena é o seu sorriso, o hang loose para a câmera, a careta fingindo que as mandíbulas estão te machucando etc.
Os bichos não merecem essa patifaria. E te digo mais, nos Estados Unidos, há mais tigres em cativeiro do que todos os que restaram correndo e tocando o terror, livres e soltos, na mãe natureza.