Foi você quem me fez assim

Amélia Calceta de Oliveira, 92

Já se passaram quase sete dias desde o falecimento de minha amada avó Amélia Calceta de Oliveira, do alto de seus 92 anos, e até agora ainda não consegui enxergar o tamanho dessa perda em nossas vidas.

Aliás, às vezes penso que é exatamente isso: minha avó Amélia era muito grande, uma imensidão de sentimentos misturados. Por isso é tão difícil mensurar sua ausência.

Era a vovozinha amável, que adocicava a vida dos netos (e bisnetos); era a ouvinte, que se interessava pelos passos de nossas vidas, carreiras; era um poço de fé e oração, independente de qual fosse a religião.

Mas Amélia era, antes de tudo, uma zeladora. Sua bondade e empatia fizeram com que, com apoio do meu saudoso avô Antônio, passasse grande parte de sua vida ajudando ao próximo.

Sua casa, sempre humilde, acolheu familiares, vizinhos e amigos. A mesa já pequena, que alimentava os seis filhos, tantas vezes serviu comida para outras pessoas que estavam em situação econômica mais apertada. Por dias, meses e até anos!

Por fim, minha avó Amélia era a guardiã de nossa história. Era minha última avó – os demais se foram nos últimos dez anos – e a mais interessada em nosso passado. Foi através de sua sabedoria que pudemos saber melhor de onde viemos.

Meus avós batizando um de seus tantos afilhados. No destaque, o Padre estou em dúvida se era o Pe João Batista ou Pe Teodoro

Alma italiana

Amélia nasceu na década de 20, na zona rural de Pirajuí, filha mais velha de um casal que acabara de desembarcar no Brasil.

Lídio Calceta, o patriarca, era italiano, nascido em Civita Castellana, pequena cidade da província de Viterbo, região de Lázio, a 70 km ao norte da capital Roma.

Pelo que sabemos de sua biografia, ainda muito jovem partiu, assim como muitos italianos, para a Argentina. Mais especificamente a cidade de Luján, na província de Buenos Aires. Tanto que, em Pirajuí, o bigodudo era chamado, justamente, pelo apelido de “Argentino”.

De lá, desembarcou no Brasil vindo do navio Cesare Battisti, em 1924. Por minha avó, soubemos que ele lutou na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Prima Guerra Mondiale, defendendo a Itália.

Era um tanto nômade, fato que adicionou à família de três crianças, uma série de viagens e mudanças de casas, cidades, Estado e até país – minha avó contava que, por alguns meses, chegaram a viver em terras paraguaias, numa época castigada pela geada.

Morreu novo, aos 30 e poucos anos. Em Pirajuí, restou uma vida de muitas dificuldades para minha bisavó Maria Zucon, filha de italianos da região de Treviso, e as crianças Amélia, Antonieta (Tonica, que hoje vive em Santo André, SP) e Oswaldo (In Memoriam).

Meu tio avô Oswaldo era chamado Gazeta (um apelido de Calceta). Em Pirajuí, ficou famoso por ser exímio pintor – e por ser o responsável por pintar a torre das igrejas, em especial a do hoje Santuário de N. Senhora Aparecida.

Minha bisavó Maria, por sua vez, nunca abandonou a filha. Amélia cuidou e viveu ao lado da mãe também por 92 anos.

Meu bisavô Lidio Calceta e bisavó Maria Zucon. Este foi o passaporte esquecido no Museu da Imigração que eu encontrei e fiz um quadro para avó Amélia

Mulher de fé

Tive o privilégio de estar ao lado de minha avó durante toda minha vida. Da infância em que todos os netos vivíamos brincando em sua casa, à juventude e vida adulta.

Mesmo morando fora de Pirajuí há 15 anos, acredito que consegui visitá-la mensalmente, o que para mim sempre foi uma honra. Inclusive estive ao seu lado em seu último dia de vida, em um momento em que ela já estava bem debilitada e encerrando sua jornada nesse mundo.

A imagem que guardo da vó Amélia é a da mulher de vestidos estampados e um coque sobre a cabeça, feito por seus longos cabelos. Esse visual, creio eu, tem forte influência de sua religião.

Apesar da formação católica, típica da época e da população rural, um fato no meio do caminho – uma cura muito importante de um ente querido – fez com que ela exercesse sua fé em outra religião por praticamente 50 anos.

A IGREJA APOSTÓLICA, também conhecida como Igreja da Santa Vó Rosa e do Santo Profeta Irmão Aldo é uma antiga instituição com sede no bairro Tatuapé, em SP.

Minha avó, durante anos e anos, foi aos cultos esporadicamente, na cidade de Bauru (não há igreja em Pirajuí) e, sem falta, ouvia às bençãos na rádio em avançado horário da noite.

Foi a doutrina religiosa que afastou minha avó da televisão, que quase nunca assistia. Por outro lado, foi uma leitora voraz. Enquanto pôde enxergar, estava com papéis, artigos, revistas e jornais nas mãos.

Se escrevo minhas palavras desde meados dos anos 1990, tenho certeza que minha avó leu quase tudo de minha autoria. Reportagens, colunas de jornal, revista, tudo!

Essa foto deve ser de 2016, com minha avó Amélia ainda morando em sua casa no Jardim América. Meu irmão Mauricio e eu

Eixo da família e da história

Tenho lindas lembranças de brincadeiras, almoços e jantares na casa de minha avó. Mesmo durante os afazeres domésticos, ela ficava por lá, conversando, dando atenção, querendo saber de tudo sobre todos nós.

Lembro do café, docinho! Da comida de tempero suave. Do bife que ela amassava bastante com um garfo na frigideira quente, era quase um chapeado.

Em especial, me recordo de suas “pizzas”, uma receita de torta italiana, alta, repleta de recheios, geralmente tomate e sardinha.

Ela levava uma grande assadeira dessa iguaria em TODOS os aniversários dos netos. Mesmo se não tivesse festa alguma, lá estava a “pizza” de Dona Amélia.

Já em São Paulo, me acostumei a pedir uma receita da delícia para levar aos colegas de trabalho, quando voltava de Pirajuí. Saía até briga e fila para conquistarem mais um pedaço antes que o tupperware estivesse vazio.

São seus filhos: Maria Aparecida de Oliveira Cipriani (tia Cidinha), professora de Ed. Infantil; Jorge Marques de Oliveira, professor de Educação Física e diretor; Luiz Marques de Oliveira (era conhecido em Pirajuí como Tartaruga, mudou-se para Campinas ainda jovem e vive por lá até hoje); José Domingos Marques de Oliveira (Zezinho da Moreira), comerciante; João Donizete Marques de Oliveira (João Pomba), funcionário público; Inês Marques de Oliveira Daniel, minha mamãe, funcionária do Colégio Fundamental.

Podíamos conversar sobre tudo com ela. Foi nesses papos que descobri onde era a Fazenda do Meirelles, propriedade rural onde viveu grande parte da vida e conheceu o marido Antônio (hoje é o bairro Santa Guilhermina); a Estiva Grande, os moldes da antiga Vila Ortiz; e figuras como o Dr. Jorge Meirelles da Rocha e Dr. Pedro da Rocha Braga.

Creio que este Homem Benigno e essas homenagens que faço a Pirajuí têm, no fundo, toda a influência de Dona Amélia.

Foto de 2018, com um de seus bisnetos

Sinônimo de notícias boas

Vou encerrando por aqui, pois como disse no início, não há limites para falar da minha hoje saudosa avó Amélia. Mas faço aqui uma última revelação pessoal.

Nos últimos tempos, dei dois presentes a minha avó, ligados ao seu passado. Um foi uma homenagem, em forma de quadro, com essa fotografia que estampa o topo do artigo, com ela aos 14 anos. Hoje são dois quadros que estão no apê de minha família, em São Paulo e no do meu primo Leonardo Cipriani, em Bauru.

A outra, foram as fotos dos seus pais, dos seus passaportes quando chegaram ao Brasil, encontradas no Museu da Imigração em São Paulo. Com elas, fiz um porta-retratos e a presenteei.

Nas duas ocasiões, ela ficou bem emocionada. Por outro lado, comigo, no momento em que a presenteava, nas duas cenas distintas, meu telefone tocou e, acredite, aconteceram coisas extremamente boas e inesquecíveis, mas na MINHA vida.

Ou seja, minha avó Amélia era uma catalisadora de realizações e coisas maravilhosas – para mim e, acredito eu, para quem estava ao seu lado.

Minha amada avó. Hoje é meu anjo da guarda. Aquele que você sempre, sempre lembrou de citar para mim, a cada vez que me despedi da Senhora, nos últimos 35 anos.

Tchau, Vovó. Obrigado por tudo.

« »