Esse texto é formado por excertos visuais da Festa Literária Internacional de Paraty, anotados entre um evento e outro, além de uma passagem em uma loja de eletrônicos para comprar um desses carregadores de celular de R$15.

 

Pouco antes de entrar no Centro Histórico da cidade, por uma rua bem estreita (seria a Marechal Deodoro?), vi-me chocado observando uma cena que se desenvolvia quase em câmera lenta diante dos meus olhos. Ansioso pelo que encontraria na 14ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, vulgo Flip, vi toda essa expectativa desaparecer ao visualizar o que um ‘artista’ aprontava bem ali na minha frente. Um sujeito tentava, a passos de formiguinha, manobrar o seu veículo naquele trecho, que já era apertado, entre um carro na guia da frente e um poste bem fino, na de trás. Ele tentava burlar a Física, a Matemática, sei lá… Não havia espaço para fazer o que ele tanto almejava, essa manobra era o mesmo que enfiar a cidade do Cairo dentro de Jundiaí (SP). Carros já começavam a se aglomerar dos dois lados (a via era de mão dupla). Era um Ford Focus, mas do antigo, modelo anterior a 2004, sedan, em uma cor vinho toda desbotada. Tinha a lataria amassada na frente e atrás. Os amassados eram, provavelmente, cicatrizes de batalha desse nada habilidoso motorista. Algumas pessoas pararam para ver o que se desenrolava, o carro já estava praticamente perpendicular à rua, formando um ângulo de 90º com a estreita calçada. Um senhor apareceu agarrado a um corrimão de uma escada. Era tão velho, mas tão velho, que já utilizava aqueles algodões nas narinas, provavelmente para facilitar o trabalho dos preparadores da funerária. Apesar que essa história do algodão na narina me incomoda um pouco desde que ouvi uma conversa que, na verdade, eles são longos e descem goela abaixo do defunto. Vocês já escutaram algo assim?

Vem, vem, pode vir. O tiozinho começou a guiar o sujeito na manobra de ré. Parou! Opa, parou! Era o mesmo que falar com o corrimão da escada. O sujeito não apenas encostou a traseira no poste, como começou a empurrar e empurrar, sob gritos da população e buzinaços dos dois lados da rua. Eu tinha de sair dali. Precisava chegar logo nessa feira.

 

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À exceção das grandes estruturas destinadas às estrelas da programação, é correto dizer que a Flip é um aglomerado de pequenos espaços. Tudo é intimista. Em praticamente todos os pontos que recebem eventos paralelos, as chamadas “casas”, afinal, são mesmo instalados nessas residências históricas, ou você chega bem antes ou vai ficar de fora da janela, tentando forçar uma risada quando todo mundo o faz lá dentro.

Em uma dessas casas vi o Frei Betto conversando bem pertinho do povo sobre religião, filosofia e morte. Em outra, entrei meio desavisado e vi um sujeito sentado em um ponto mais alto. Pensei até que fosse um segurança, mas era o Ruy Castro, assinando exemplares de seu mais novo livro, A Noite Do Meu Bem, para uma fila organizada pelo lado de fora. Por uns instantes visualizei Castro trabalhando como segurança no local – imagina o tanto de história que teria para contar para os colegas de plantão… “Sabe o Garrincha? E a Carmen Miranda?”

As ruas de Paraty revelam o espírito do que está acontecendo na cidade naqueles dias. Tomadas de visitantes, autores, editores, tradutores, livreiros, leitores e leiteiros (vi alguns), elas exibem atrações distintas a cada pequena esquina. Um grupo de indiozinhos, todos crianças, com pintura no rosto, entoa uma canção. Dois caras, um com um saxofone e outro com algumas peças da bateria, fazem um jazz muito cabeça que me proporciona duas sensações antagônicas: a primeira, a de admiração ante o estranhamento que o som me causa; a segunda, de ordem pública, com vontade de telefonar para os órgãos de segurança para que venham imediatamente e tragam o decibelímetro.

Em várias esquinas há uma bancada de madeira branca, que guarda uma gigantesca variedade de doces, como cocadas e bolos com cremosas coberturas. Se o tiozinho dos algodões no nariz por ali passasse, certamente teria seu diabetes alterado apenas pelo campo de visão e não viveria para chupar manga esse ano.

 

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Numa das mais esperadas “mesas” do evento, o escritor norueguês Karl Ove Knausgård estaria em Paraty para falar de seu sucesso mundial: os seis livros da coleção Minha Luta, em que o autor detalha sua própria vida em uma narrativa muito detalhista e reflexiva.

Além de escrever bem demais, foi muito interessante ouvi-lo falar. Já havia escutado sua voz em um vídeo em que ele narra uma cirurgia cerebral realizada na Albânia. Tenho a impressão que, tal como na escrita, cada palavra por ele proferida é bem pensada, bem encaixada – claro que falo isso mais ou menos pelo que sei do inglês, pois ultimamente ando derrapando até no brasileiro, você calcula no norueguês.

Ao término da conversa, fomos todos para a tenda de autógrafos que ficava estrategicamente ao lado da livraria. Uma senhora na minha frente parecia bem comovida com tudo aquilo que ouvira do escritor. Percebi um pouco mais tarde que não era comoção, estava irrequieta, pois guardava lugar para umas outras nove pessoas, entre jovens e adultos, que estavam comprando seus exemplares na loja. Maldita.

Já havia escurecido e eu estava de olho na água negra que fazia margem à fila de espera quando Karl Ove passou. Comprido, deve ter o que, 1,90m? Estava com um paletó cinza e os cabelos penteados exatamente no meio, como se tivesse utilizado a ferramenta ‘régua’ no Photoshop. Sua chegada botou a fila para andar, mas em ritmo bem lento. Era atencioso com cada um dos presentes e a aglomeração era gigantesca. Estava com uma cervejinha Stela Artois, que bebericava com a mão direita em intervalos bem longos de tempo. Já pensou se esse homem derruba essa cerveja nos meus livros? Calma, Marcelo, ele sabe o que faz, deve estar assinando tanto autógrafo que até a tendinite já deu sinais.

Chegou minha vez, havia se passado quase uma hora. Como disse, em sua obra, vivemos por páginas e páginas a sua própria vida. Seus medos, suas paixões, detalhes muito íntimos de seu mundo e de seus familiares. Foi pensando nisso que o abordei. Senhor Knausgård, queria agradecer por cada palavra escrita em seus livros que gosto tanto. Opa, obrigado, ele disse em um misto entre olhar para a assinatura e para mim. E já que estava tão íntimo do pessoal dele, nesse tempo todo de leitura, não me contive em perguntar. A propósito, como se pronuncia o nome do seu irmão? Yn-g-ve. Ele me disse, pausadamente e sorrindo. Era um sorriso de descontração ou seria aquela risadinha que costuma sair nos momentos de pânico? Ele autografou os dois livros, um com meu nome e uma frase, outro apenas com sua rubrica.

 

Karl Ove
Karl Ove

 

Aposto que tem gente pensando ‘ai, ele não vai falar das pedras’? Olha, minha vontade era não falar, mas acho que vai ser impossível. Eu nunca havia visitado Paraty. Já conhecia, sim, outras cidades históricas com suas ruas de pedras, desniveladas. Inclusive nasci em uma rua de paralelepípedos – ou seja, até nos damos muito bem, apesar de algumas divergências filosóficas. Mas juro que não imaginava que as vielas do Centro Histórico fossem de tamanho apedrejamento.

Sabe esses vídeos da modalidade crossfit que de vez em quando postam nas redes, povo gritando, levantando pesos, girando pneus de caminhão? Qualquer funcionária do comércio central de Paraty faz exercícios muito mais severos só de ir trabalhar e voltar para casa no almoço.

As pedras são disformes, às vezes muito lisas, quando você olha para os lados, é comum ver pessoas escorregarem e quase caírem, ou, na famosa expressão, saírem catando cavaco. Se uma mulher resolve ir de salto alto por aquelas pedras, passa a saber como é a sensação de trabalhar nas alturas no Cirque Du Soleil.

É bonito. É histórico. É tudo isso. Mas vai na fé, que é puxado.

 

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Um batuque anuncia uma manifestação com um grupo de pessoas que percorre todas as ruas da cidade. Nos cartazes os jovens pedem mais educação para a cidade. Nos intervalos entre as frases sobre o ensino, eles entoam uns “Fora Temer”.

Aliás, esse grito era ouvido, em cantos diversos da Flip. Em uma das mesas principais, na mediação de Gregorio Duvivier, a escritora Tati Bernardi disse um “Fora Temer” com a voz bem rouca – revelou ter sonhado que ficaria afônica no evento, três dias antes. Dito e feito.

Na parede de uma das casas da festa, a do Instituto Moreira Salles, em que rascunhos da poesia da autora homenageada da Flip, Ana Cristina Cesar (ou, simplesmente, Ana C.), havia uma inscrição a caneta: Fora Temer. Em seguida, noutra cor de tinta, uma rasura e um Fica Temer. E, por fim, uma tréplica, riscando o ‘Fica’ e finalizando: Fora Temer outra vez.

Uma pessoa (seria homem ou mulher?) aparece totalmente vestida de planta, em uma performance com um desses regadores de plástico, o que me parecia uma conotação de proteção ao meio ambiente. Lembro de ter ouvido um transeunte mais polêmico falar: é maconha, ela está vestida de maconha. Cada um vê o que quer, não é mesmo?

Dentro de uma loja de tecidos e bolsas no comércio local, ouço a proprietária falando com um sujeito e reclamando da situação econômica. E agora será que melhora? Ela perguntou para o cara que, curiosamente, estava em uma grande janela interna da loja. Sei não, acho que isso aqui piora ainda mais. Mas piorar como? Mas ainda? Acho que não… Já mudaram tudo, agora pode ser que melhore um pouco.

Do meio da multidão que protestava, uma garota vem na minha direção e abraça uma jovem que conversava com as amigas logo à frente. Jout Jout! Te adoro demais! Tira uma foto comigo?

Confesso que durante toda a festa literária aquela havia sido a primeira manifestação de tietagem mais explícita, feita com a estrela do YouTube, dona do badalado canal Jout Jout Prazer.

Estou trabalhando em um texto sobre influenciadores digitais (sou trabalhador demais, sangue italiano) e, já há algum tempo, tentava entrevistá-la, mas sempre sem conseguir ultrapassar as barreiras da assessoria. Bom, estava ali mesmo, de boa, o protesto tinha acabado de passar, pensei… Por que não, né?

Abordei a youtuber, falei do tema da minha reportagem – os veículos tradicionais e o espaço que eles têm dado para blogueiros, tuiteiros, etc. Pô, ela estava ali passeando, numa boa, chega um chato com uma pergunta mais chata ainda. Ela preferiu não falar. Mas me deu um abraço e um beijo e ainda perguntou se eu não ia ficar bravo, olha só. Gente fina.

 

Ruy
Ruy

 

Em frente a uma casa onde estavam servindo várias cachaças para degustação, um sujeito interrompeu minha caminhada (para pegar outra pinga, agora com mel pois a amarelinha havia descido na garganta quenem um caco de vidro) para me mostrar sua poesia.

Carregava vários livretos nas mãos, feitos em xerox, pelo jeito, com as capas em papel colorido. Tinha vários temas, me lembro de um cujo título era relacionado a gás. Você sabia que durante os protestos de 2013 foram lançadas mais de três mil bombas de gás em um confronto no Rio de Janeiro? Ele me perguntou. Fiquei um pouco sem graça, sem assunto e logo voltei para a fonte de aguardente.

Depois comecei a refletir. Como nós recebemos mal as pessoas que chegam com algo para vender. Já reparou? Se você está no bar, desses de cadeira nas calçadas, você às vezes prefere que o garçom até derrube a bandeja em cima do que venham um sujeito lhe oferecer seu trabalho – pode ser artesanato ou pastilhas Halls –, estou errado?

Imagina a dificuldade que essa galera enfrenta para ser lida. Opa, agora eu quero experimentar essa envelhecida no carvalho.

Os últimos raios do dia já ameaçavam se esconder e um vento um pouco mais frio deixava as pessoas com os braços cruzados nas cadeiras, posicionadas do lado de fora da tenda principal, defronte ao telão, que reproduzia as conversas para quem não havia comprado o ingresso para estar no auditório.

Era possível ver o mar bem calmo de um lado, com vários barcos e lanchas e, do outro, a cidade histórica e a cadeia de morros que as circundam. O público aguardava a presença e as palavras da escritora bielorussa Svetlana Alexievich, que teve sua obra reconhecida com o Prêmio Nobel em 2015. Sua escrita ecoa o sofrimento de vítimas. São monólogos que abordam visões sobre a guerra e a catástrofe nuclear, entre outros temas.

Um pouco antes de ela aparecer, uma das lanchas tocava em uma caixa de som, muito alto e distorcido, uma música antiga do Gusttavo Lima. Comecei a pensar no pior. E se a mesa começasse no telão, com a escritora falando do sofrimento e, por outro lado, também na sofrência, o cantor sertanejo estivesse esgoelando? Quem será que iria mergulhar naquela água gelada e pedir para o sujeito desligar o cacho de abelhas? E se ele não quisesse cooperar?

Nada disso foi necessário. O silêncio tomou conta de Paraty e só foi quebrado com a voz da tradutora que vinha da grande tela do evento. Aquela cena toda emitiu uma mensagem: talvez o melhor da Flip seja o clima da Flip.

Há anos tenho vontade de conhecê-la, de saber o que tanto se passa nas mesas dos grandes escritores, nos estandes das grandes editoras. Tive de vir testemunhar a festa para perceber, quase no final, que o que há de melhor nessa experiência está nas ruas, nas conversas, enfim, nas pessoas que fazem da Flip o melhor lugar para se estar nesses poucos dias entre Junho e Julho.

Voltei feliz. Quando passei pela primeira rua onde cheguei, o motorista do Ford Focus já não estava mais lá. Havia, no entanto, um raspado bem forte no poste preto. É, pelo jeito a Flip marcou esse sujeito também.

 

(as fotos são todas nossas, o celular tá velho, a bateria viciada, mas ainda dá para o gasto)

 

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Equivocou-se David Foster Wallace ou Por Que Amo Cruzeiros – I