Eu fico vendo esse monte de fotos suas com efeito vintage em festivais de música nos sites de internet e geralmente me pego pensando caramba que saudades eu tenho da minha época de shows, quando o rock era rock mesmo. Hoje em dia é essa galera bebendo Heineken em copão de plástico – quenem aqueles que a Coca-Cola dava –, usando umas roupinhas de botão apertadas que parecem que vão estourar como um milho de pipoca na panela. E a barba? É tanta barba que, se não fosse o funcionalismo público, podia mandar baixar as portas da Gillette. As meninas? As meninas tão lindas, não tenho o que falar. Aliás, às vezes dão uma forçada nessas tiaras de flor – fica um cheiro de Dia de Finados no ar.
Ai mais esse funcionário Marcelo é um daqueles chatões saudosistas. Negativo, minha filha. Se aqui o falo, é porque confesso que vivi uma outra época. Quando o rock era a essência, era o desejo de querer fazer, a ânsia de viver o momento. Uma ânsia tão profunda que parece aquela que dá quando se lê o Kindle dentro do ônibus circular.
Estava de malas prontas para cobrir um grande festival roqueiro em Buenos Aires, que na época era capital da Argentina. Eu era o responsável pelas reportagens na Rolling Stone Hortolândia. A música era tão efervescente naqueles dias que demandava uma sucursal da revista no município localizado na região de Campinas.
O budget era meio restrito na ocasião e me fizeram ir de ônibus para o país vizinho. Como a equipe de produção da revista era dividida com a do guia Lonely Planet Hortolândia, acabaram me mandando por engano ao Beto Carrero World.
Como os deuses do rock sempre trabalham juntos (inclusive foram aprovados no mesmo edital de concurso), o engano teve um lado bom: enquanto brincava na Xícara Maluca percebi que havia sentado ao lado de ninguém menos que Paul Kossoff, lendário guitarrista do Free. Mas Paul, você também foi enviado por engano aqui para o parque de diversões. Não não meu jovem, estava em Balneário Camboriú e geralmente esse passeio até aqui está incluído no pacote.
Bebemos vodka pura e, na ausência de ervas alucinógenas, fumamos bicarbonato de sódio que disponibilizavam no kit dental do Beto Carrero World. Naquela noite uivamos para a lua e resolvemos seguir juntos para Buenos Aires.
No outro dia partimos bem cedo. Mas foi com o coração partido, pois ainda naquela manhã haveria um desfile com os animais personagens do Madagascar, que são licenciados pelo parque de diversões. Acho eles um barato.
Já estávamos bem perto do destino e começávamos a sentir o clima do festival. As estradas estavam cobertas de rockers, jovens cabeludos e inconsequentes pedindo por carona. Abri os vidros do carro e vi lindas garotas que haviam saído escondidas da casa dos pais. Era o mesmo clima que se sentia em Woodstock… Kossof começou a chorar. Nostalgia? Perguntei. Mas não era: ao fechar os vidros do automóvel quase decepei seu dedo anular.
Pare o carro, disse o inglês. Vamos dar uma carona para esse cara. Não titubeei: entrou no carro, racha a gasolina. Era Iggy Pop. O bicho tava melado de tanto andar, cheio de areia, parecia um action figure trufado da Cacau Show. O astro punk também ia para o festival. Não lembrava direito se ele ia tocar ou não. Ele parou para ir a um banheiro fazer um número 2 em um posto de gasolina em Rosário – havia exagerado no chimichurri na noite anterior – e o carona dele foi embora deixando-o para trás. Nem todo mundo tem paciência com os intestinos no mundo do rock.
Paramos o carro e bolamos uma cigarrilha com um pouco do bicarbonato que havia sobrado da outra vez. Olhamos para a lua que se formava no céu e Iggy, com sua voz grossa e única, nos disse que havia esquecido de deixar um dinheiro para seu locatário em Londres. Perguntei se, naquela altura da carreira dele, não compensava comprar um apê. Ele deu uma tragada profunda no beck de bicarbonato, me olhou nos olhos e disse: acho que esse ano vou ver alguma coisa na planta mesmo.
Hey, funcionário Marcelo, gritaram lá de trás, no meio dos doidos que se amontoavam na estrada. Era Gene Simmons, baixista do Kiss.
Ele eu conhecia bem. Fomos concunhados por um tempo. Ele engravidou minha meia-irmã que não perdia um show deles naquela época que tinham retirado a máscara. Chegamos até a fazer uma festinha de noivado para os dois em um pesqueiro em Boituva-SP. Mas o casamento não deu certo quando ele descobriu que não tinha o menor talento para ser homem de família naquela fase da carreira, também influenciou na decisão o fato da gravidez ser, na verdade, uma severa crise de gases que minha meia-irmã teve. Sobre esse episódio no pesqueiro, ele viria a escrever depois a música I’ve left my fish in your arms, jamais gravada ou registrada.
O que você está fazendo aqui seu safado, ele me perguntou. Certeza que você está atrás de puteiro. Está louco, Gene? Cortei o assunto logo de cara… Estou vindo para a mesma fita que você: o grande festival. Sabia que ia encontrá-lo, pois o Kiss seria uma das bandas principais do evento. Iam tocar logo depois do The Who e antes do Deep Purple. Mais tarde a ordem dos fatores mudaria porque tinha um pessoal do Purple que tomava medicação forte e logo depois das 19h era sopinha e cama.
Dormimos no carro. Paul Kossoff sofria com insônia e estava lendo um livro O Monge e o Executivo disse que estava precisando de umas dicas de gestão. Gene estava de saco cheio com aquela lâmpada acesa no carro e, sem se levantar do banco de trás, apagou a luz utilizando a própria a língua. Iggy Pop não resistiu e emendou: já pensou uma linguada dessas na hora H, no que Gene o repreendeu: não te dei essas liberdades, tio.
O sol nasceu e não havia mais tempo a perder. Vamos para o festival galera! Uhuuu todos gritamos. O carro não funcionou. Estava com gasolina, olhei óleo e água. Não tinha o que dar errado. Max Cavalera passava ali por perto e eu pedi que ele desse uma olhada. Ele se debruçou sobre o motor e seu dreadlock quase enroscou na bateria. Xi, é o alternador, Marcelo. Vamos ter que levar para oficina. E lá fomos nós, ele no volante eu, Iggy, Kossoff (que eu viria a saber depois que já havia morrido desde 1976) e Gene Simmons empurrando na frente do veículo. Max ficou doido com nossa ignorância com mecânica e gritou várias vezes: É atrás! Atrááááisss. Desse episódio com o carro quebrado ele viria a compor o hit Arise.
Não dá nem para acreditar, mas chegamos no backstage do festival antes de subir a primeira banda, o System of a Down. Logo em seguida entrou o Korn. Eles pularam tanto naquele show que tiveram que fazer um intervalo e trocar o madeiramento do palco inteiro. Estávamos eu e Paul Kossoff tomando um Jack Daniel’s com gelo. Também estava lá Paulinho da Viola. Ele comentou comigo que um dos patrocinadores do evento enganou ele dizendo que ali seria um passeio em uma vinícola.
Subiu no palco o Cradle of Filth. O show dos caras foi tão satânico que eu flagrei o Marilyn Manson fazendo um nome do pai. Fui no banheiro mijar o uísque e estava quebrado – um dos caras do Korn tinha entrado pulando e acabou trincando a louça da privada. Fui num canto do camarote dar uma urinada. Marilyn estava lá. Naquelas de ficar jogando conversa fora na hora do xixi, eu comentei que estava com as costelas doendo porque tinha vindo dirigindo desde Santa Catarina. Na ocasião ele me disse que tinha muita dor nas costas, mas que tinha se curado porque recentemente havia retirado fora uma das costelas. Que sujeitinho.
Bateu uma fome, não comia nada desde a redação da revista, em Hortolânda. Minha barriga urrava. Fui para a fila do bifê e lá estava Sammy Haggar, que na época tinha assinado pro Van Halen. Ele estava preocupado com a salada de maionese. Ele me contou que a bactéria salmonella sobrevive até dois dias na faca que entra em contato com o alimento contaminado. Me disse que tinha parado de usar drogas e estava numa paranoia de normas sanitárias. E estava mesmo, ainda naquela noite ele daria uma voadora no peito de George Harrison, que atravessava aquela fase meio indiana, e estava comendo tudo com a mão.
Os shows foram um melhor que o outro. Na apresentação do Type O Negative acabou a energia elétrica e eu e Rod Stewart nos revezamos na manivela do gerador portátil – na época ainda não havia a usina hidrelétrica de Itaipu Internacional. Na apresentação do Nirvana, Dave Grohl se embananou todo e perdeu o suporte do prato – lá foi o funcionário Marcelo segurar o acessório durante o set inteiro. Na última música Kurt Cobain veio correndo e se jogou em cima da bateria. Até hoje faço pilates para dor lombar por causa desse louco.
Ozzy fechou a noite com louvor. No final agradeceu ao ditador Fidel Castro pela oportunidade de tocar na ilha – sua mente não estava muito bem localizada geograficamente.
Enfim, foi tudo inesquecível. Nunca escrevi uma linha dessa matéria. Na verdade, antes de chegar na Argentina eu tinha molhado meu caderno moleskine e minha caneta no brinquedo Splash no Beto Carrero. Também não ia adiantar nada escrever. A revista fecharia as portas poucos dias depois e sua redação seria utilizada para o título Vanity Fair Hortolândia.
Daqueles dias loucos de música, paz, bicarbonato e uísque, eu não guardei lembranças materiais. Apenas sentimento, nostalgia e saudades de tempos tão puros e autênticos nos palcos da vida.
Aliás, para não dizer que não levei nada, o King Diamond conseguiu vender pra mim um daqueles títulos de sociedade para esses Clubes de Vantagens e Diárias em Hotel que vivem tentando enfiar goela abaixo nos turistas. Me ferrei. Não é a toa que o chamam de “O Malvadão do Rock”.
(foto de capa: encarregado Mauricio)
Esse foi o post de estreia do Homem Benigno no Projeto SOLO. Acompanhe a gente por lá também.
André
12/05/2015 — 01:52
De Pirajuí a Hortolândia!!