Foi você quem me fez assim

NA RAIZ: um dia na pele do mascote da Festa da Mandioca de Pirajuí

Na mesma época em que o jornalista Leandro Demori traz novo fôlego ao jornalismo de internet com seu magnífico artigo sobre o Trem Bala Brasileiro, o Homem Benigno se inspirou e resolveu não ficar parado: enviou no último domingo (17), o seu único e mais fiel correspondente, o encarregado Mauricio, para acompanhar um dia na vida do famoso Mascote da Festa da Mandioca de Pirajuí – figurinha que QUEBROU a internet em algumas ocasiões, como vocês bem podem conferir abaixo.

O resultado do trabalho de Demori foi a prova de que ainda há muito o que saber para podermos LER o Brasil dos dias de hoje. O resultado do trabalho do encarregado Mauricio foi uma dúzia de bolinhas de mandioqueijo.

Deliciem-se com este intimista diário narrado em primeira pessoa por ele próprio, o Mascote.

 

07:00

Já estou no terceiro copo de um café ralo, parecido com uma água de batata, mas nada parece afugentar o sono que toma conta de minh’alma. Foi uma longa noite arrumando tudo, preparando cada detalhe para que a festa fosse a melhor de todas, a mais inesquecível. Em dado momento da madrugada, tive uma discussão filosófica feia com as meninas da cozinha sobre o conceito do mandioqueijo. Estou me sentindo culpado.

Ao peso das pálpebras se junta a força do Sol nascente. Seus raios atingem a minha roupa, confeccionada com tecido não tecido, TNT, que faz lembrar uma lona ou cortina. Sofro com o calor. Se está quente agora você calcula sob o Sol do meio-dia do Noroeste Paulista.

 

09:00

A Festa da Mandioca está em sua 6ª edição e é um evento beneficente, organizado por voluntários ligados a instituições que cuidam de idosos, crianças e dependentes químicos em Pirajuí.

Uma hora brincando com as crianças e já estou zonzo. Também sinto uma espécie de crise de identidade: em pouco tempo, fui chamado de pelo menos 300 nomes diferentes: Mandiocão, Mandioquinha, Super Mandioca, Homem Mandioca e José Carlos, confesso que não entendi bem esse último.

O calor só piora e o corpo pede arrego, mas ignoro. Sou o mascote, tenho uma missão.

Mandiocas feito sentinelas (ou seriam gárgulas) do evento – vigia constante
Mandiocas feito sentinelas (ou seriam gárgulas) do evento – vigia constante

 

11:00

Nas barracas, vejo o deslumbrante desfile de iguarias. Vão das mais tradicionais – coxinhas, mandioca frita – às mais ousadas, como o já citado mandioqueijo e a Mandioca Ruffles. Chego à conclusão de que o mandioqueijo é o Paulo Coelho do mundo dos pratos com raízes tuberosas; um divisor de opiniões, talvez um incompreendido.

Tomo um copo de suco de mandioca e sinto parte do meu vigor voltar. Tropeço numa espécie de gárgula-mandioquinha e vou de cara ao chão. De volta ao desânimo.

O controverso #mandioqueijo em todo seu esplendor
O controverso #mandioqueijo em todo seu esplendor

 

13:00

A festa está no auge, lotada. Filas se formam em cada barraquinha, mesas são dispostas para as refeições e o cheirinho de comida domina o ar. Estou com fome, mas nunca fui tão disputado. Tiro fotos com todo mundo, dou vários abraços. Nem os políticos escapam do meu charme: sou puxado para uma pose com os figurões.

Paro pra comer uma mandioca frita (não me chame de canibal, dói… me considero mais um sobrevivente) e o sabor me lembra de uma curiosa história. É sabido que a mandioca é temperamental – só serve pra cozinhar se for plantada e colhida em condições específicas. Uma das mais críticas está no ato da colheita. Caso ocorra a flatulência (n. do e.: o peido) no momento da retirada da raiz, pode esquecer. A mandioca não cozinha.

 

15:00

Cantores sertanejos conquistam os visitantes – Lucas Akira e Fábio, uma dupla nipo-brasileira. Lucas, bonitão, me encara como se eu já estivesse cozido dentro de uma panela. Sua origem oriental me tranquiliza – comemoro o fato de ter negado o emprego como mascote da Festa do Sushi de Garça-SP.

A sanfona chora, assim como eu. Pra falar a verdade, não sei afirmar se é choro ou suor escorrendo. Arrisco um pas de deux mas, ao notar a estranheza no olhar alheio, caio num arrochão pesado. O suor já é impossível de ignorar.

Uma senhora me olha com desdém na fila dos banheiros. Ela parece não aceitar que uma mandioca utilize o banheiro masculino. Estamos em 2015 e a intolerância com raízes vegetais ainda é evidente na sociedade interiorana. Quando finalmente entro na cabine, percebo que molhei meu corpo de mandioca – o TNT nada fresco – no chão. A retirada da roupa é um suplício. Já se vão vinte minutos e ainda nem consegui começar. Ouço meu nome sendo chamado lá fora. Que fase.

Emendando um arrocha porque ninguém é de ferro
Emendando um arrocha porque ninguém é de ferro

 

17:00

A música vai parando e os convidados se dispersam. A festa parece alcançar seu fim. Sinto um misto de alívio com tristeza. Meu traje e eu somos um agora, como um simbionte, e tenho a impressão de que nunca mais seremos criaturas separadas novamente. Sinto uma gosma escorregar pela minha barriga… Seria uma mistura de suor e sangue? Não, era um pouco de sopa de mandioquinha que eu tinha escondido para fazer um lanche mais tarde.

O Sol começa a ceder e o fim de tarde está esplêndido.

Tudo foi um sucesso e a minha missão está cumprida. Mal consigo acreditar. Esboço uma sorrisa, mas uma triste lembrança me assola subitamente: amanhã ainda vou trabalhar no Festival da Jaca em São Felipe, BA. E eu reclamando da roupa de hoje.

Se vivo estivesse, Isaac Azimov aqui certamente diria: "Eu, mandioca"
Se vivo estivesse, Isaac Asimov aqui certamente diria: “Eu, mandioca”

 

Colaborou com texto e fotos:

O encarregado Mauricio

Foto de capa, uma cortesia de:

Newton “The Doctor” Oliveira

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