Ainda nem tinha acabado o exame de DNA do Ratinho quando o Jacques me ligou dizendo que passaria na minha casa para darmos um pulo na Quermesse de Balbinos. Estava indeciso sobre qual roupa vestir, pois fazia muito frio e isso é muito raro aqui por essas bandas – a única chance de vestir uma jaqueta mais grossa ou gola cacharrel (do latim rolê) acontece em meados de junho e julho. O calor costuma ser tão severo que, para que os motoqueiros usem suas exuberantes jaquetas de couro, é comum despejarem uma ou duas forminhas de gelo pelo zíper.

Pouco tempo depois e lá estava o seu carro buzinando. Ao sair de casa, a luz amarela do farol e a fumaça do fedorento escapamento misturavam-se com a névoa que se formava no ar – seria uma noite bem fria. Dou um beijo em minha mãe e leio em seus olhos aquele olhar de todas as genitoras ao “entregar” seus filhos para a quermesse. Não sabem muito bem que horas, em que condições – ou, em casos mais trágicos – se os filhos serão novamente entregues ao lar.

Nem 20 quilômetros separam Pirajuí de Balbinos, mas percorrer a vicinal durante a noite, ainda mais se estiver com uns litros a mais de álcool do que o permitido pela ONU, fazem da missão um tanto desafiadora.

Curiosamente, a estrada dá acesso, também, ao único motel da cidade. Ou seja, ser visto na região fora da época da quermesse, em atitude suspeita, significa que você terá de ter uma boa desculpa na ponta da língua. Um conhecido meu, ao ser flagrado por sua esposa nesse trajeto, com uma mulher desconhecida dentro do carro, pensou muito rápido e, simplesmente, abriu a porta e disse: “estou apenas lhe dando carona, ela mora nesta fazenda”. A moça, que não fazia ideia onde estava, abriu a porteira e entrou no sítio desconhecido. Acreditem vocês que, desconfiada, a esposa desse sujeito visitou essa fazenda todos os dias por dois anos, para saber se a menina morava lá mesmo. A garota, por sua vez, foi obrigada a conviver com uma nova família, ganhou um ofício e aprendeu a dirigir um trator com arado.

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A Quermesse de Balbinos é um evento mágico que acontece anualmente, durante quatro finais de semana entre junho e julho. O simpático município, que tem quatro mil habitantes, vê sua população triplicar ante o evento, sempre recheado com interessantes atrações musicais. Michel Teló, quando ainda era um prodígio integrante do então desconhecido Grupo Tradição, já pulou quenem pogobol naquele pequeno palco da praça. O cantor Daniel ali esteve em tempos de menor (e também maior) glamour.

Foi nesse mesmo cenário que, em meados da década de 1990 o prefeito, diante da dupla Milionário & Zé Rico (In memoriam) proferiu uma frase que viria a se tornar lenda nos anos seguintes. Com microfone na mão, não se conteve de emoção diante da plateia lotada e das Gargantas de Ouro do Brasil e bradou, emocionado: “Neste ano nós trouxemos Milionário & Zé Rico (aplausos). E ano que vem, Balbinos, nós vamos trazer coisa ainda melhor (breve silêncio questionador, seguido de mais aplausos)”.

Jacques parou o carro em uma vaga apertada – as ruas ficam abarrotadas de carro, em praticamente toda extensão do município. Teve um ano que inventei de estacionar em um barranco tão íngreme que para minha carona sair do carro foi preciso chamar o helicóptero Águia para içá-la.

A festa estava bombando. Sentei na área coberta, em uma mesa encapada com um papel grosso, rosado. Logo pedi um frango assado, que é devorado com as mãos (nas quermesses, os frequentadores mais experientes costumam trazer o próprio talher ou, ao menos, um canivete). Ao destrinchar um galináceo, nos aproximamos com nosso lado mais selvagem e, assim que chega algum conhecido, ou seja, a cada 5 minutos, você cumprimenta a pessoa com a mão e boca besuntadas de gordura. Na época eu vestia costeletas na cara e, com meia hora de festa, elas estavam tão endurecidas de óleo que pareciam duas peças de Lego.

No palco, uma banda-baile com 240 integrantes já havia começado o seu show sem atrair muita atenção. Ao fundo, na parte coberta, em tom semi-fúnebre, uma voz masculina, exageradamente próxima ao microfone, cantava os números de uma interminável rodada de bingo. Quarenta e oito. Trinta e Seis. Dezenove. Vinte e um. Treze.

Jacques se levantou da mesa para xavecar uma linda morena com uma calça tão branca e apertada que era possível enxergar sua artéria poplítea. Naquela época era muito fácil se dar bem com a mulherada na quermesse, havia um clima de azaração muito forte no ar. Quando dava certo de descolar uma paquerinha, era comum se afastar um pouco da muvuca e ir atrás da igreja da praça, dar uma namorada. Nunca pelo centro da praça. Ali era uma zona escura, uma região dos umbrais, que ninguém tinha coragem de atravessar (ainda mais porque éramos estrangeiros e não sabíamos o que podia acontecer).

Umas amigas sentaram comigo à mesa e saboreamos, também, o tradicional churrasquinho de quermesse – no caso, o “inho” é apenas uma maneira de falar. Um espeto de bambu é entregue com uns cinco toletes de carne e, na ponta, um pão francês inteiro vai espetado. Fico pensando de onde vem o lucro desse espeto já que, a cada unidade, vai mais ou menos ¼ do boi.

O cantor, com um topete que mescla o penteado do aventureiro Tintin com um rinoceronte, interrompe a música bruscamente. “Não gente, não… Briga não, gente. Está uma festa tão bonita. Não vamos estragar com violência”, anuncia.

Me levanto da mesa no instinto de descobrir o que estava acontecendo. Ao longe, é possível enxergar uma movimentação. Estava feio. Dava para ouvir gritos de mulheres e o barulho seco de golpes, garrafas de vidro caindo… Vejo um tênis voar. Nessas brigas de rua, o tênis é a primeira coisa que vai embora, porque ninguém que tenha menos de 30 anos costuma amarrar os cadarços.

A polícia chegou em bom número e o spray de pimenta comeu solto. De longe já consegui perceber que a confusão tinha dispersado. Ufa… Não sei o que tinha acontecido, afinal, os ânimos ficam exaltados do nada. E a rodada do bingo ainda não tinha acabado, acredita? Quarenta e dois. Oito. Onze. Trinta e nove…

 

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“Funcionário Marcelo! Rápido!”, uma garota veio gritando em minha direção. “É o Jacques que está brigando, tão arrebentando ele, corre!” Eles quem? Quem está batendo nele? “Tem uns dez caras… É gente barra pesada, ele está sangrando”.

Só consegui pensar na coxuda de branco que estava com ele, certeza que era irmã de alguém, ex-namorada de alguém. Bota isso na sua cabeça, man. Essa mina que você conversa no WhatsApp e nas DM de Twitter ou é irmã de alguém, ou é filha de alguém, ou é ex de alguém. Em 98% dos casos, vai por mim.

Saí meio de lado da confusão e corri até onde a briga estava rolando. Já não tinha mais ninguém, a música tinha voltado e a galera já se organizava para a música dance, a dança da mãozinha – e, no final, vai dar uma rodadinha.

Ai, caramba. Tinha sangue no chão. Ou era maçã do amor? Não, era sangue mesmo, havia respingos… Olhei para baixo e vi que um pessoal estava meio agitado lá embaixo, na região onde estão os banheiros químicos.

Sou de uma época anterior a esses banheiros móveis. Havia os dois banheiros da praça e só. Masculino e feminino. Daí de vez em quando o sujeito bebia demais e invertia as bolas. O equívoco era corrigido na base do golpe de capoeira.

Com o advento do banheiro químico a coisa ficou mais tranquila e organizada. No entanto, uma vez me deu uma dor de barriga muito forte e precisei utilizar a cabine no desespero e estava tão imunda, mas tão imunda, que tive de recorrer ao método do Van Damme no filme “Kick Boxer – O Desafio do Dragão” para me aliviar.

Passei pelos banheiros e percebi que algo estranho acontecia atrás do ônibus rural. Automaticamente me lembrei da época em que não dirigia e, para vir até a quermesse, organizavam um ônibus que partia às 23h de Pirajuí. Ao melhor estilo “água de Mad Max”, quem conseguia entrar no ônibus, conseguia desfrutar da festa. Quem não chegava até o transporte, tinha que se contentar com a fantasmagórica noite pirajuiense nos finais de semana de eventos na cidade vizinha.

Lembrei de uma viagem em especial, quando o ônibus também tinha a palavra Rural pintado na lataria. Daí, no meio do trecho, em uma escuridão total, alguns endiabrados passageiros (tudo molecada) encontraram um enxadão embaixo do banco. Não contentes com a peculiar descoberta, os moleques começaram a arremessar a enxada de um lado para o outro no ônibus. No meio da penumbra, cada vez que a lâmina batia no ferro do banco, fazia uma faísca iluminava e um barulho infernal “TINNNN”. Foram os 16 km mais longos da minha vida.

Com cuidado, me aproximei do ônibus, que estava estacionado em uma esquina, com a roda apoiada num pedaço de madeira – provavelmente já teve melhores dias de freio-de-mão. Passo após passo, fui me aproximando em direção a espécie de esconderijo que a lataria fazia em contato com o muro e a árvore. Estava com medo. Pensei na fragilidade da vida. Lembrei do olhar de minha mãe. Quantos jovens como nós (naquela época eu era jovem, acredite) tinham morrido em besteiras como essas? Tantos e tantos esbarrões que se transformaram em pancadas, pauladas, cadeiradas e garrafadas. Quantos tiros foram disparados por conta de calças legging brancas nessa vida?

E por falar nela. É ela quem vejo. Agachada, com toda imensidão alva maculada por um sangue escuro, borrado, ao melhor estilo de Grey´s Anatomy (mentira lá nem rola sangue é só drama, traição). Aos pés dela, meu amigo Jacques, que foi quem me viu ali primeiro. Ela fez sinal que eu me aproximasse em silêncio. De fato, estavam escondidos. Lá atrás, a música tinha baixado um pouco, provavelmente era hora do intervalinho de 30 minutos que a banda anuncia (e que geralmente viram 50 minutos). Por incrível que pareça, ainda ouvia o Mr. Bad News cantando aquele maldito bingo. Sete. Vinte e dois. Doze. Cacete será que ainda era a mesma rodada?

Ai caraio, agora pude perceber… O sangue não era do Jacques… Num misto de sussurro, medo e agonia, ele me disse, tremendo: “Cara… Tamo fudido”.

Continua.

 

Nem respire e já leia a continuação:

Rapsódia de Quermesse – Parte II