“Saudades do Atari 2600? Você é um trouxa, um saudosista em busca de cliques dos amantes de velharias.” E você, então? Safado. Eu sei dos seus podres, mas dessa vez eu vou deixar passar, que é capaz de dar até polícia na parada. Seu comédia.

Vamos reformular: não tenho saudades da ENGINE do Atari, longe disso… Aquilo lá era uma tristeza só, um bando de quadradinho, umas cores nada a ver – quem iria gostar de perder tempo jogando um game ou assistindo a vídeos no YouTube sobre um jogo de blocos em que você constroi mundos, cenários e enredos, não é mesmo? Sinto falta é daquela fase da vida, saca?

A real é que sempre mexi com videogame. Desde sempre. Da primeira vez que vi o sujeito controlando o que passava na tela da televisão (justamente com um Atari) eu fiquei doido. A vida deu suas voltas, mas vira e mexe eu ainda sento em frente à caixinha preta para tirar uma pedrinha (expressão pirajuiense para “jogar uma partida de Winning Eleven ou Fifa”).

Por falar em Pirajuí, foi por lá mesmo que, pela primeira vez, vi um jogo. Posso estar enganado, mas acho que era o Enduro (1983). A coisa mais espetacular dessa evolução tecnológica é que, apesar de serem dois retângulos disputando o mesmo lugar numa trêmula estradinha, na nossa imaginação eram os heróis da Fórmula 1 que ali estavam. Um Nigel Mansell com um bigode quadrilátero, um Ayrton Senna triangular, namorando à época uma Xuxa Meneghel poligonal.

E assim era com todos os cartuchos. As capas magníficas, como a de H.E.R.O. (1984), davam lugar a umas formas geométricas vermelhas que soltavam uma sujeira quando ativadas pelo comando do único botão vermelho do joystiq – era a arma do herói. Tem que se virar com o que tem, quenem um sujeito amigo nosso que morava em uma república em Santo André (SP). Acabou o sabonete, começaram a usar o xampu para se lavar. Acabou o xampu. E agora? Manda o detergente. Se viraram por uma semana tomando banho com detergente sabor maçã-verde.

A pronúncia do nome dos games também era espetacular. Pelo menos lá na minha quebrada, não falávamos hero na pronúncia americana, mas “Réro”. Se alguém pedisse emprestada a fita River Raid (1982) falando ~reid~ certamente ia tomar uns cascudos. Era “Ráid” mermão, não sabe ler?

Enfim, essa era a vida do Atari 2600 – aliás, alguém sabe por que esse número? Era o endereço da rua do fundador, José Frederico Atari? –, molecada jogada no tapete, em volta do videogame, que tinha inclusive aquele adaptador antigo com a chavinha, lembra: VIDEOGAME ou TV?

Ia tudo muito bem, a galera pirava nos games, ficava com a mão doendo no Decathlon (1983), game em que, para o hominho correr, você tinha que ficar mexendo com o manche muito rapidamente e apertando o botão simultaneamente. Um conhecido nosso era tão bom nesse jogo que ele tinha um dos braços mais musculosos que outro, de tanta prática. De lá já foi automaticamente buscar uma carreira no cargo de auxiliar de britadeira. Função que ocupa até hoje, por sinal.

Não se iluda com esse tiozinho aí da capa, os gráficos do jogo não estão muito nessa vibe
Não se iluda com esse tiozinho aí da capa, os gráficos do jogo não estão muito nessa vibe
Uma nova era

Lembro como se fosse ontem quando estávamos jogando na sala de casa e um de meus camaradas estava meio incomodado. Parecia ansioso e, ao mesmo tempo, introspectivo. Como todo mundo convivia junto ali, sabíamos que algo estava errado. O que foi mano? Problemas dentro de casa? Doença na família? A vizinha jogou um balde de lavagem no seu quintal?

“Seguinte. Fiquei sabendo de um lance meio perturbador”.

Estava nítido que algo estava em sua mente. Mas o que era?

“Tá uma conversa forte na cidade que o Zé Henrique arranjou um jogo de Atari que é PORNOGRÁFICO”.

Meu Deus… aquela música medieval daqueles malucos que ninguém nem sabe onde andam hoje em dia começou a tocar: ♫ Dori me Interimo adapare / Dori me / Ameno ameno latire ♫. E olha que ela sequer tinha sido lançada.

Um jogo pornô? É isso mesmo?

Sim, era X-Men (1983).

 

Caramba… Vamos correr e pegar essa fita, tá vacilando? Era exatamente aí que residia o problema. O Zé Henrique era um sujeito mais velho, já até trabalhava para você ter uma ideia. Não tinha muita conversa com a molecada. Para ajudar a piorar, a mãe dele era um tanto brava e já tinha se ligado que um dos brinquedos que estava lá na sua casa era um tanto “proibido para menores”.

E agora? Aaaa… Molecada você já viu né, logo montamos um gabinete de crise e começamos a bolar planos para colocar as mãos no cartucho picante. Os prognósticos eram desanimadores. Um informante da Vila Abel nos disse que a notícia estava bastante espalhada na cidade de Pirajuí e que já haviam células de moleques tentando alcançar o game – até agora, sem sucesso.

Nós tínhamos um plano. Havia um sujeito da rua 2 que era mais velho – sempre havia os repetentes né – já tinha até um pouco de barba. “Não é barba, funcionário Marcelo, ele queimou com limão”. Enfim, mas ao menos parecia.

A ideia foi que ele iria até a casa, bem apresentável. “Uso terno?” Não, nem tanto, ou vão pensar que está lá para falar de igreja. Ele simplesmente bateria palma no horário que o ZH estivesse trabalhando e diria à mãe que veio buscar uma fita que o filho havia emprestado. “Qual fita?”, ela inocentemente diria. E ele apontaria a danada. Perfeito!

No dia do golpe, ficamos todos na esquina – o que vendo agora, após décadas, foi uma perfeita idiotice né, uns dez moleques esperando na torcida. Quase nada suspeito…

Clap clap clap. Bateu palmas.

Enduro: Esse era o nosso Velozes & Furiosos na época que o Paul Walker sequer tinha feito a primeira comunhão ainda
Enduro: Esse era o nosso Velozes & Furiosos na época que o Paul Walker sequer tinha feito a primeira comunhão ainda

A mulher saiu com um pano de prato enxugando as mãos. Simplesmente olhou no rosto do mais velho de nós e disse. “Nem vem que eu não quero saber de rolo com essa fita de videogame. Vaza, vaza”.

Aquilo foi talvez a nossa primeira grande derrota na vida. Mal sabíamos que nos anos seguintes ainda viriam a trágica morte dos Mamonas Assassinas e a aposentadoria do goleiro Rogério Ceni.

Voltamos cabisbaixos para casa. Um de nós ainda teve uma ideia. “Vamos ser criativos! E se jogássemos Pitfall! (1982) imaginando que é um jogo pornô? A selva seria o quarto, o cipó seria o equivalente a… Vraaaa!!!

Passaram-lhe a perna e o jogaram no chão antes que terminasse a frase. Estávamos vivendo, também, o surgimento dos primeiros movimentos de capoeira.

Era tudo deprimente.

 

E assim ficou a nossa vida, cinza, até que algum tempo depois. Acho que uns dois meses mais ou menos, estávamos em casa jogando e um amigo entrou gritando! Consegui! Consegui!

Nas mãos ele carregava a mais cobiçada fita de Atari 2600 de todos os tempos (ao menos nos nossos tempos).

Eita porra, onde você arranjou isso? “Rapaz… Se eu te contar você não acredita”.

Ele estava descendo embora e passou em frente à casa do Zé Henrique. Tomou coragem e pediu o cartucho emprestado. “Tá aqui ó, mas não espalha muito a notícia não senão fica cheio de molecada aqui no portão de casa e minha mãe fica doida”.

Sem mais conversas, tratamos de ligar o Atari 2600 e nos deliciar com toda a sedução de X-Man, que nada mais é que a saga de um sujeito nu (com suas partes íntimas retratadas por um sensual retângulo), que foge de tesouras, dentaduras e afins até chegar em sua cobiçada – e também nua – amada. Ou seja, é o roteiro desse filme do Shame (2012), em que o Michael Fassbender tá quenem um coelho com anfetamina. Era espetacular!

 

Enfim, quando vejo esse bando de gráficos da E3 2016, esse God of War todo diferente, esse Skyrim recauchutado e o Kojima chapando, penso comigo mesmo: será que essa molecada de hoje (YouTube) vai viver as mesmas emoções e perrengues da nossa época de Atari 2600?