Foi você quem me fez assim

O sagrado e o profano no Carnaval no Gigantão

Quando o relógio marca 22h no sábado as primeiras pessoas começam a caminhar pela cidade, a passos lentos e ritmados, em direção a porção mais alta de Pirajuí, a Vila Ortiz. Um fluxo de gente a pé que a cada minuto que passa engrossa e se transforma em uma verdadeira procissão em direção a um objetivo comum. É mais ou menos esse horário que a música começa a rolar – com ecos por praticamente toda a cidade – e se prolonga até às 4h, 4h30, às vezes até 5h. Quando isso acontece, está dada a largada ao chamado Carnaval Popular no Gigantão.

Claro que essa dramatização foi para dar uma pegada mais Franco Zefirelli à coisa toda, mas a realidade é que além do povo que segue nas pernadas até o local, um amontoado de carros se espreme nos arredores e em estacionamentos improvisados em grandes terrenos, além do fenômeno mais intrigante: o dos cidadãos que só existem dentro do Gigantão. São pessoas que não são vistas nas ruas, escolas ou filas de banco, mas apenas na quadra, nos quatro dias de carnaval. Elas se alimentam? Elas bebem? Suportam a luz do sol?

 

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Gigantão é o apelido dado ao Ginásio de Esportes “Satílio de Lima”, uma grande área que conta com a quadra, além de um campo de futebol, uma cancha de bocha e um grande espaço livre ideal para sediar grandes eventos.

O nome de Satílio de Lima batizou o local tendo em vista sua biografia, ligada aos esportes. Sempre foi um grande incentivador e, principalmente, organizador de eventos das mais diversas modalidades esportivas como o atletismo, por exemplo.

Na recente história das folias carnavalescas, a cidade manteve uma rotina parecida. Uma concentração de pessoas ficam na rua até o início dos bailes de carnaval. Nesse momento, a massa bifurca: uns vão para o Parque Clube de Pirajuí, outros, para o Gigantão, já outros, vão direto para a cama roncar – e ouvir o resto do ano a mulher reclamar que virou um velho, que não aguenta mais nenhum evento social, que só pensa em si mesmo, que bem que ela devia ter ouvido a mãe dela.

No passado é correto afirmar que as duas festas compunham um legítimo Muro de Berlim entre as classes sociais de Pirajuí, mas isso ficou para trás, hoje em dia elas configuram duas opções: é muito comum o cara dar uma passada nos dois bailes, sem contar que o clube também tem o lance de ser associado, convites mais caros, etc.

O Carnaval no Gigantão sempre foi tido como popular. A maioria das vezes ele é gratuito, outras vezes ele teve preços simbólicos. Lembro particularmente em uma situação em que as matinês eram gratuitas, mas as noitadas custavam R$ 1 a entrada (isso mesmo, ainda existiam as verdinhas). Houve choro e ranger de dentes.

 

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Entender a dinâmica da Festa de Momo no Gigantão em Pirajuí significa, consequentemente, compreender o fenômeno musical chamado Claudinho e Seus Teclados.

Na década de 90, numa era pré-Mp3 e sem a menor chance de bandas como esses safados do Kings of Leon sobreviver, qualquer música ao vivo executada em território pirajuiense era monopolizada pelas mãos de Claudinho. Ele estava em aniversários da cidade, sorteios de brindes, inauguração de supermercados, nascimentos e velórios.

Sorridente, sua aparência flerta com o semblante de Celso Russomano, o defensor dos consumidores. É de Lins-SP, terra natal de @camilamgarcia, do frigorífico Bertin (hoje JBS) e do escritor Mario Prata, cujo filho é meio-intelectual, meio-canhoteiro.

No começo se apresentava como Claudinho e Seu Teclado. Ao investir num segundo andar do instrumento, passou a assinar Claudinho e Seus Teclados. Ao perceber a necessidade de uma voz feminina, incorporou uma excelente crooner, Rose. Assim, dava início a carreira sob nova nomenclatura Musical Claudinho e Rose.

Claudinho estava em todo lugar, mas isso era algo bom. Ele sabia como ninguém animar o público – ainda mais os exigentes pirajuienses.

No Gigantão, Claudinho era um gladiador. Primeiramente sozinho e, depois, com a parceira, eles encararam por diversas vezes a massa de foliões. Tocava por horas durante a noite e emendava com as animadíssimas matinês. Suas mãos eram alabardas nessa arena que é a vida de cantor da noite, principalmente nos seguidos dias de festas. O povo enche a boca para falar que Mick Jagger perde 6 quilos por show, se ele encarasse quatro noites de Gigantão em Pirajuí ele viraria pó e, consequentemente, correria grande risco de ser inalado por seu companheiro Keith Richards.

Axé, sambas, sertanejo e até rock.  Todos os estilos musicais eram contemplados por aquela figura solitária no palco – algumas vezes ladeada por um par de dançarinas.

Mas seu show começava mesmo nas marchinhas. Um intervalo de silêncio emendava uma daquelas introduções eletrônicas do teclado e, aí sim, todos os sucessos eram executados com um estilo marcante – elas geralmente eram tocadas em um tempo mais acelerado, que favorecia a formação dos intermináveis trenzinhos. Além dos clássicos, Claudinho ainda fazia questão de inserir sucessos do lado B das marchinhas, que era mais ou menos o que acontecia em Seattle, EUA, na mesma época, com o rock e as tinturas de cabelo. Dentre as marchinhas-de-garagem que ele executava, estavam Kojak e Kung-Fu.

 

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Quando começam as marchinhas, o Gigantão se converte automaticamente naquela centopeia humana que era um saco para matar no finado game Strider. O trenzinho é um patrimônio cultural da festa. Ele une classes, idades, suores e odores – isso porque agrega tanto o engomadinho que acabou de entrar quanto o verdadeiro náufrago, que está dançando desde a primeira música, com as vestes já rasgadas.

O trenzinho é obrigatório. É a chance de você chegar mais perto daquela gatinha ou então de dar aquela disfarçada marchando com os olhos para cima no momento que o namorado dela acopla no vagão.

Na matinê uma corda separa o público mais velho da criançada. Quando o trenzinho passa no limite, toda a composição rala as barrigas na corda, numa passagem que mistura ritmo e sangue.

À noite não há a divisão. Ultimamente, as luzes permanecem acesas e é possível enxergar todo o salão. No passado, apenas alguns spots tentavam em vão iluminar a festa. Ocasião em que o carnaval era transformado em uma festa cega, um verdadeiro Império do Sentidos.

Certo carnaval, um grande amigo, que estava “jurado” por um sujeito briguentinho de outro bairro, para não perder a solenidade carnavalesca, percorria os trenzinhos de costas, para não ser pego na traição.

 

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Nessa cortina mítica que envolve o Carnaval Popular no Gigantão há espaço para os boatos das grandes brigas e situações violentas. Algo que também carrega um pouco da fantasia popular.

De vez em quando, de fato, o mel chupa a abelha e os seguranças têm de agir com certa destreza. Mas também não chega ser uma hecatombe vai.

Lembro de uma situação marcante em que uma briga se desenvolveu em uma das saídas. Um empurra-empurra e aquela adrenalina da desinteligência no ar, mas o que tranquilizava é que a coisa seguia em direção ao escape (acho que os próprios briguentos estavam com essa consciência). No entanto, uma virada no roteiro pegou todo mundo de surpresa: um misterioso sujeito de boné (tal qual aquele cidadão que rasgou as notas das escolas de samba) quis ver o circo pegar fogo, foi lá e baixou as portas do Gigantão, no meio da briga. Rapaz foi um trupé. Mas aí a polícia chegou e o Claudinho já emendou outra marchinha.

Rola uma história meio bizarra também que, certa vez, uma moça teria sido esfaqueada durante a festa por um ex-namorado ciumento. Consta que era aquela época do Bate Forte o Tambor Que Eu Quero Tic Tic Tá e ela teria terminado de dançar a música inteira para, só daí, perceber que tinha uma faca enfiada em suas costas.

 

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No Gigantão a música não cessa, pelo jeito não há intervalos. Uma multidão insandecida dança, faz passinhos e enfileira trenzinhos enquanto outras centenas de pessoas ficam nas arquibancadas olhando, comendo e bebendo. Às vezes se levantam e dançam animadamente ali mesmo. Não é nada incomum perceber uns tombos.

Ali naquela quadra de esportes o carnaval se recorda que ele é uma festa do povo, que vale a pena esperar aquela música da Pequena Eva (Eva) onde o nosso amor na última astronave e cantá-la de olhos fechados e braços abertos.

Mas quando a festa termina, o músico se despede, agradece a prefeitura e lança um estridente “Boa noite Pi-Ra-Ju-í”. Às luzes ficam mais fortes, o pessoal da limpeza já começa a ensaiar uns vassourões, o povo sai em fila para a rua entre barracas de cachorro-quente e isopores de bebidas, que teimam em vender o último trago do carnaval. Na manhã seguinte, tudo acaba e, como diria a Graça Foster, é “vida que segue”.

Registros de uma matinê no Gigantão na década passada
Registros de uma matinê no Gigantão na década passada

 

[foto de capa: The Wedding Dance de Pieter Bruegel]

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