Previously in Rapsódia de Quermesse II

Meu amigo Jacques estava com o sangue da cadela Jennifer, que ele atropelou quando ia levar a garota de calça branca, Anna, para um esquema errado aí
√ A cachorrinha era amada pela população local e tentaram linchá-lo
√ Escondidos, recebemos uma dica para procurar o velho Messias, um sábio e místico ex-escravo
√ O shorts de Messias era meio curto e mostrava um pedaço do seu cabeço-de-jaca junto a coxa
√ Dezenas de pessoas furiosas estavam na porta de sua casa de barro querendo o sangue do casal

 

Messias levantou-se repentinamente de sua reza misteriosa. “Acho que vai dar certo”, disse. Dar certo o quê? PA-PA-PAAAA… Começaram a bater na porta da casa. “Velho, libera esses assassinos aí porque a próxima batida na porta vai ser com o machado”.

“Eles fizeram o que fizeram sem querer. Não foi por mal, vocês vão ouvir isso da boca deles”…

Após a serena fala de Messias, milagrosamente, houve um instante de silêncio na turba. Parecia ter surgido um vulto de racionalidade em meio a selvageria que floresceu junto ao sentimento de vingança. E nós três, abraçados atrás do bom homem, estávamos esperando um julgamento. Lá fora, entre o barulho das tochas, eles pareciam cochichar, até que…

Au! Au! Au-au!  Ai cacete, parece que quem deu o veredicto foi um dos cachorros que conhecia Jennifer – e com ela mantinha relação de muita intimidade a cada 6 ou 8 meses, que é quando entrava no cio.

Au! Au-au! Au!

E a multidão urrou: AAAAEEEEEEEEEEE!!!!

Tarde demais. Fomos condenados pelo animal. PAAAAAKKHHH! A primeira machadada foi desferida na porta do pobre senhorzinho.

A serenidade deu lugar a medo e raiva no semblante de Messias. Que puxou debaixo de um armário capenga um facão de cortar cana, todo enferrujado, praticamente sem cabo. Olhando pra gente, disse com voz firme: “Vão lá para o fundo, para o fogão. E corre, CORRE, seus filho da puta”.

A roça de milho em volta da casa formava uma espécie de corredor fechado, ou seja, era muito difícil fazer um cerco ao local. Dois degraus feitos de barro baixavam o nível do terreno e davam acesso a duas casinhas, uma era o banheiro, sem porta, mas com um porrete escorado – provavelmente para espantar alguma cobra ou porco-do-mato que insistissem em atrapalhar a cagada do Messias Velho. A outra era uma pequena varanda com uma chaminé toda tosca, que ali ficava o fogão e forno à lenha. Aliás, pelo menos em cenário: a impressão que dava é que não eram utilizados desde a época daqueles romances brasileiros que a gente só lê porque cai no vestibular da universidade pública, mas aí você faz e é difícil e seus pais acabam falando para você fazer na particular mesmo, afinal, a outra era de graça mas tinha que gastar com Xerox™, cantina, aluguel de república, multa por causa de barulho nas festa, etc.

A gritaria dentro da casa estava muito alta, não dava para entender se eles já tinham conseguido passar pela porta. Mas ouvíamos o barulho do facão cortando o vento. Era questão de tempo até que invadissem o barraco.

Que merda você nos colocou hein Jacques, puta merda. Jacques? Ótimo. Ele tinha desmaiado. Puxei um grosso pedaço de lenha do fundo do forno… Minhas mãos ficaram todas sujas de terra e restos de carvão… Joguei o lenho longe e, do nada, não resisti e comecei a chorar – igualzinho ao que, misteriosamente, havia acontecido quando assisti à cena do ursinho em A.I. – Inteligência Artificial. Anna veio correndo me amparar. Me desculpa, Anna, me descontrolei porque eu não sei que está rolando… Estava tudo bem até agora pouco eu só queria vir na Quermesse de Balbinos curtir um pouco e… Anna interrompeu meus lamentos com um beijo. E outro. E outro. Sua calça legging branca agora, além de sangue, tinha também carvão – ia dar trabalho na máquina de lavar.

Cacete o que eu era agora? Um talarico?

***

Jacques acorda gritando! Fogo! Uma tocha é arremessada no teto do pequeno banheiro e, facilmente, consome o telhado feito de palha. Nos levantamos e penso rapidamente se meu amigo teria visto nosso beijo… Não tive tempo nem para isso… Um a um, eles começam a sair da casa de Messias vindo em nossa direção… “Eles estão ali no fogão”. Não gosto muito de spoilers mas tudo dava a entender que ali era o nosso fim.

Não era!

Fom-Fom, uma buzina? “Vamo rapaziada, ou vocês vão querer virar quirela na mão desses lunáticos”. Mentor! O guardião do sabor! Mentoooooor! Ele mesmo, de trás do milharal chegava o homem, dirigindo o detonado carro do Jacques. Mas e as chaves? Vejo nas mãos do meu amigo um chaveiro todo diferente com um LEMBREI DE VOCÊ EM APARECIDA DO NORTE escrito na fonte Comic Sans. Esse vagabundo desse palhaço trocou a chave do carro enquanto conversávamos em sua barraca de capeta. E esse larápio acabou de salvar nossas vidas (ou, ao menos, nossa conformação odôntica).

“Vai dirigindo, eu que não quero me estrupiar nessa história”. Obrigado, Mentor. Deseje-nos boa sorte. “Outra coisa, funcionário Marcelo. Você acertou a resposta da bebida ‘bombeirinho’ na gincana… Eu fiz você beber o capeta de sacanagem”. Tudo bem, Mentor… Dessa vez está perdoado.

Engatei a primeira aceleradíssimo e soltei a embreagem de uma só vez jogando terra para todos os lados (não repitam isso em casa, molecada com mais de 18 anos). Voltei pelo buraco no milharal, mas logo tive que começar a atropelar os pés de milho. Tinha que encontrar uma trilha em meio a roça, porque senão as plantações iam entrando no eixo do carro e ficaríamos parados.

Encontrei a estradinha, mas ainda assim estava perdido. Essas grandes plantações são um verdadeiro labirinto – tem um conhecido nosso de Pirajuí que gastou um tanque inteiro de Fiat Uno e não conseguiu sair do meio de um canavial. Ele narrou essa história e vendeu para um empresário norteamericano que deturpou todo o fato e fez do relato o roteiro para o filme O Náufrago, com Tim Robbins e a bola de vôlei.

Continuo acelerado, vocês não fazem ideia de como é estar a 80km/h no meio de um milharal. “Ai funcionário Marcelo”. O que aconteceu Anna? “Eles estão vindo!!!”.

Inacreditável! Quatro motoqueiros ficaram lado a lado com nosso carro. A cada acelerada eles se aproximavam e batiam o pé na lataria. Um deles estava com um garupa que girava uma corrente. Jacques me passa o extintor. Ele pega extintor na mão mas não quer me dar pois ainda falta um mês para o vencimento. Dá essa porra logo, man. Abro o meu vidro e com uma mão jogo o extintor no motor de uma das motos, ela se desequilibra e, na queda, derruba também o de trás. Penso comigo que, se isso fosse no Wii Sports™ eu tinha feito uma boa pontuação.

A estradinha parece que vai, finalmente, chegar em algum ponto. Começa a ficar mais larga… Precisávamos chegar logo na cidade porque, no meio da quermesse, certamente estaríamos mais seguros.

Nossa alegria durou muito pouco. Outros dois motoqueiros chegaram, com capacetes cheios de espinho. Eles ladeavam uma caminhonete Chevrolet S-10 preta, com homens e mulheres em cima. E, pasmem, Messias dizia a verdade quando afirmou que a cadela não havia morrido. Em cima da caminhonete estava Jennifer, com algumas faixas nas costas, um tapa olho no rosto, um colete negro cheio de plumas e segurando, em um das patas, um cetro com um pequeno crânio de gato em cima. Auuuuuuuuuuuu… Vejo pelo retrovisor que ela uivava e, assim, incentivava os capangas a vingar os machucados e as suturas no seu corpo.

Eles estão se aproximando, estão em maior número e tem muito mais motor que esse carro 1.0 financiado. Era hora de um kamikaze? Não. Não ia matar ninguém e, muito menos, a Jennifer. Afinal, essa imprudênca começou a história toda. “Acelera, Marcelo, logo depois da subida nós já vamos sair na rua da quermesse”. Será, Anna? Acelero com toda a força que minha panturrilha poderia gerar. Eles estão vindo logo atrás, no retrovisor vejo que Jennifer está tentando tirar as ataduras com mordidas, isso coça pra chuchu, certeza que iam ter que colocar aqueles colares protetores elizabetanos para ela não mexer na ferida.

Chegamos… As rodas saem da terra e tocam o asfalto… Eles estão vindo logo atrás, já cruzo a primeira rua à esquerda e passo bem perto da multidão no evento. Quando chega a caminhonete com a cachorra, nossa salvação é anunciada. A banda-baile interrompe a música Implorando Pra Trair, de Michel Teló feat. Gusttavo Lima e fala para o público. “Olha só que boa notícia, Balbinos, disseram que ela estava machucada, mas ela parece estar bem, sobe aqui CA-DE-LI-NHA-JEN-NI-FER!!!!”. Aeeeeeeeeee a multidão grita em emoção, alguns até choram de alegria, se beijam e beijam a mulher dos outros. Jennifer interrompe a caçada e sobe ao palco com ares de Madre Teresa de Calcutá.

***

E nós, não tínhamos muito mais o que cheirar por lá depois de toda a confusão formada. Onde você mora, Anna? “Logo ali do lado daquela caçamba amarela”. Tem certeza que você vai ficar bem? “Fica tranquilo. O problema deles é com vocês, que são de fora, amanhã é vida que segue”. Ela me deu um longo abraço e, no Jacques, um beijo. Ligo o carro de volta para pegar a vicinal. Olho para trás e vejo que ela também está olhando para mim. Engato a primeira e sigo.

Bota o cinto, Jacques que agora nós finalmente vamos pegar a estrada de volta. Negativo. No portal da entrada de Balbinos uns dez caras bloqueiam a pista. “Vocês não vão embora sem ao menos uma cicatriz, rapaziada. Ninguém entra aqui, atropela um animal indefeso e vai embora dando risada”. Maldita hora que saí de casa hoje, Deus me livre. “Aqui o nosso perdão judicial é na base da porrada”.

“ENTÃO VAMO VÊ, RAPEIZE!”

São? Isso mesmo… Era meu grande amigo São e, ao lado dele, outros caras da minha turma de Pirajuí: Julinho da Net, Renato Bueno e Marquinho Liborio. Naquela época estava todo mundo solteiro e fazendo 100 abdominais enquanto bebia Coca-Cola. “Vocês sumiram, T. Aposto que arranjaram quiaca”. É, São, você está mais que certo. “Vamo pegar esses mosca-de-varejo então que ainda dá tempo de chegar em Pirajuí e comer um lanche no Vanilton”.

Liba, Sã, Bueno e JulinhoNaNet em foto da época
Liba, Sã, Bueno e JulinhoNaNet em foto da época

Daí, meus amigos, foi só pena que voou. Resumo da ópera. Não chegamos assim tão ilesos em casa, mas vitoriosos.

No domingo, acordei com uma baita dor nas costas e dei aquela espreguiçada monstro assim que saí da cama. Minha mãe estava na cozinha, com um olhar de preocupação. “Menino… Você chegou altas horas da madrugada, todo sujo, nem falou com ninguém”. Fica tranquila, Mama… Aconteceu um pequeno B.O. ontem lá, mas os moleques estavam por perto e resolveram rapidinho, não deu nada não. “Mas e o carro, filho?”. A, deram uma zoada no carro do Jacques mas, enfim, acontece. É só dar uma polida e trocar o vidro. “Quem é Jacques, Marcelo? Você foi sozinho com o carro do seu pai ontem à noite. Olha só o estado que você deixou o carro”. O que a senhora está dizendo? “Dá seus pulos, hein menino, vê o que você vai contar para o seu pai porque ele está transtornado”.

Corri até a varanda e lá estava o carro, todo pixado, com o vidro traseiro detonado. Peguei o celular e procurei o Jacques na agenda… Nem sinal. Nem no celular, nada. Mas ele era meu melhor amigo. Era? Ai cacete.

Lavei o rosto. Peguei um pedaço de pão e subi até o bar do Cirineu para esfriar um pouco a cabeça e tentar entender o que havia acontecido. No caminho, o celular vibrou. Era um SMS: “Saudades de você. Anna”.

Peraí, a Anna existiu e o Jacques não? A cadela Jennifer existiu ou não? Afinal, eu estava todo machucado. Pensei por alguns dias nessa história toda. Não respondi o SMS e, um tempo depois, deixei de remexer esse passado que, hoje, escrevo aqui para vocês. Só sei de uma coisa: que baita Quermesse de Balbinos foi aquela!

 

Fim. E boa quermesse para vocês!