Demorei um tanto para revelar essas passagens de minha vida ao lado do crooner britânico David Bowie (1947 – 2016) por diversos motivos: a dor e espanto diante de seu repentino passamento; a confusão, fruto de minha memória fraca, pois pensei ter morrido David Gilmour (cheguei a ligar para a esposa dele Margarete que entendeu se tratar de um telemarketing da empresa GVT); por fim, pelos seus direitos autorais e biográficos pertencentes à gravadora RCA – estou com o relacionamento abalado com a corporação, pois fiquei de entregar um queijo minas para o CEO deles, o Valdir. É que meu fornecedor foi preso recentemente em um caso de receptação de rolamentos. Ele andava muito ansioso.
Estive com Bowie em dois momentos de minha vida. A primeira vez em Bromley, subúrbio de Londres e, a segunda e última, em Apucarana, Paraná.
Em Bromley nos conhecemos pelo papel do acaso. Eu tinha comido aquele monte de batata cozida misturadas com aquelas cervejas de R$ 18 a caneca (essa nação precisa de uma Ambev ou ao menos de alguma marca do Grupo Petrópolis) e estava numa azia danada, percorrendo os pubs. Sempre fui meio fluente em inglês: falo e escrevo muito bem no idioma. Mas não consigo entender o que ouço ou compreender o que leio.
– Estou numa BLOODY azia, vocês sabem onde encontro um Eno aqui em Bromley?
“Hoje, só lá no Wolf Club“. Fui sem titubear e lá encontrei, equivocadamente, Brian Eno e esse jovem cabeludo, magro como uma vareta, de olhar hipnotizante e umas roupas compradas no bazar da pechincha.
Sem querer, conheci ali naquela noite dois monstros da música. Infelizmente, dois meses depois, eu estava na fila do hospital do servidor para tratar de uma gastrite.
Já em Apucarana, minha parceria com David Bowie foi criativa e fundamental. Na época, eu estava para comprar um Santana (queria porque queria), verde musgo, para botar uma roda preta, enfim, o óbvio.
Daí nisso eu recebo um telegrama de Bowie (naquela época havia apenas 16 e-mails no Brasil, que tinham endereços de três linhas no papel almaço e todos pertenciam ao comunicador Marcelo Tas). Por um momento eu pensei que fosse de seu pai, o finado Zé Bowie, para quem eu tinha de ficado de ver uma cozinha planejada com um ex-cunhado meu daqui do Brasil. Apesar que falei que seria difícil mandar esse material de navio porque um dos montadores tinha uma labirintite velhaca.
Enfim, era do jovem David. Ele disse que estava por aqui e andava um pouco entediado com as domingueiras do Copacabana Palace e estava pensando em dar um pulo em um clube de “Saint Vincent, called Porchat Island”. Eu peguei o telefone e liguei no orelhão do hotel. Sai fora disso, David, vem pra cá que eu vou levar você para dar uma olhada nesse Santana que eu vi aqui nos classificados do Shopping News.
Ele desceu do ônibus na rodoviária velha e eu estava ali na espera. Na hora que o vi, percebo que estava todo trajado como o alienígena Ziggy Stardust. Minhas almas. Não deu nem tempo de acudir o coitado, um polícia brucutu já estava dando uma geral nele, pedindo passaporte. Seu guarda, pelo amor de Deus esse homem é um gênio do que virá a ser chamado de britpop. “Não dá nada não, eu também toco clarinete na fanfarra da polícia militar. Vai, cadê o documento”?
Passado o susto eu mandei que ele tirasse aquela peruca e as maquiagens. Ainda não exista o Teatro Mágico e, até então, povo vestido assim fora de lona de circo ia para o xilindró (a não ser que fosse leão de chácara do Sítio do Pica Pau Amarelo).
Chovia bastante quando pegamos a Castello Branco, uma chuva chata e esse homem fumando no carro com a janela aberta, feito uma caipora. Nessa hora já comecei a me arrepender, devia ter convidado o Alice Cooper pensei eu, maldosamente. Eu perguntei para ele se poderíamos pegar a Castello até o final, cortar por aquela vicinalzinha até a Raposo Tavares, daí a gente tocava mais um pouco e chegava em Apucarana. Com aqueles olhos que me perseguem até hoje, jogando a franja com a cabeça e rabiscando uns acordes em seu violão, David Bowie me disse, calmamente: “Você vai pegar a Raposo ali pertinho de Santa Cruz do Rio Pardo, né?”. Definitivamente, ele era um camaleão.
Na ocasião ele resmungava uma música que pensava em chamar de Absolute Beginners. Achei fraca. Muito melosa. Larga disso, David, essa música aí não vai agradar ninguém (eu estava doido para ouvir o noticiário no meu toca-fitas). Aliás, você pensa mesmo em continuar vivendo de música? Não sei se você viu mas saiu um edital legal para o tribunal de justiça. Parece que são 600 vagas. E outra, você começa em algum lugar mais escondido, mas daí lá dentro você vai crescendo, mudando de setor. E ainda tem os recessos… Era como se eu estivesse falando com o vento.
Chegamos em Apucarana umas 17 horas, dava até para chegar antes mas travou a coluna do Bowie e paramos em um posto de saúde de Espírito Santo do Turvo para ele tomar um Tramal na veia.
O lugar era um buraco. Uma estrada de terra terrível, tinha um areião que chegou a dar uma sambada, cada vez que o nosso carro derrapava o Bowie urrava de dor quenem um leão de zoológico quando está perto do meio dia. Pensei, cacete será que esse cara vai morrer aqui comigo… “Stop este BLOODY veículo”!
Ele desceu do carro e foi em direção a um pequeno morro que dava para uma bela visão do pôr do sol, que começava a se desenhar. O verde daquele pasto se misturava com o azul do céu, que ali imprimia uma massa simbiótica, de onde emergia o vermelho que, feito sangue, engolia o deus Sol, dando-lhe autorização para seu merecido descanso. Aquele balé de cores e energias anunciava o início do turno da mãe noite. David Bowie parecia extasiado diante dessa sinfonia da natureza, ele botou uma das mãos no peito e cantou, com uma voz rouca e seca, que cortava aquele vento do interior paranaense:
“Tell my wife I love her very much she knows”
No que eu interrompi, ô seu caraio para com essa enrolação que esse sujeito é muito ignorante e às 17h30 ele tranca a porteira do sítio dele ninguém entra e ninguém sai.
Botei o Bowie para abrir a porteira, ele não conseguiu. Coloquei ele para dirigir enquanto eu fazia o serviço. Ele se confundiu com a mão de trânsito britânica e quase jogou o carro para dentro do mata-burro.
No sítio chegou um tiozão que parecia ter saído dos traços de Mauricio de Souza (ou de alguns dos seus desenhistas CLT). O bicho coçava tanto o saco que David Bowie chegou a oferecer um Nebacetin pra ele.
Cadê o Santana?
O sujeito guardava o carro na pocilga, dá para acreditar nisso? Um cheiro de lavagem que dava medo e uns porco cachaço coisa mais linda. Bowie já saiu na frente, questionando: quem engordou esses porcos? Soubemos ali que, da mesma forma que o cantor britânico era, por si só, um gênio da canção, este homem era um mestre na engorda suína.
[Nota do Editor: a engorda do porco é uma arte ímpar, recheada de beleza e sensibilidade. O homem que tem essa habilidade, como o velho Augustinho, de Pirajuí, é uma versão próxima do que os gregos chamavam de deuses. Há registros que Olavo Bilac teria inspirado o Parnasianismo brasileiro no rigor poético de uma engorda de uma leitoa no sítio de seu concunhado]
Ele nos mostrou sua arte. O carinho com que separava os animais, soubemos que o cheiro não era de lavagem coisa nenhuma, mas ração. “Vocês acham que eu vou dar lavagem para porco meu? Para perceber se é lavagem, quando joga no tacho ela começa a borbulhar, chega a dar nojo”.
Bowie não conteve a emoção e vomitou no capô do Santana que eu ia comprar. De raiva, dei um carreirão e ele caiu dentro da pocilga. Ele levantou todo descabelado, com os mantos rasgados, segurando uma bola de vidro com um cálculo renal dentro (ele anda com isso para cima e para baixo).
Eu estava com uma dessas câmeras descartáveis e tirei esse retrato dele:
Demos risada do episódio. Acabei não comprando o carro. Meu dinheiro do Plano Collor ficou de sair, mas acabou demorando mais uns anos. Até lá, apenas trouxas tinham carros de cor verde musgo.
Naquela noite jantamos na casa do sitiante. Mesa farta, comemos abóbora recheada, leitão à pururuca e arroz carreteiro. Tomamos suco de caju natural e, de sobremesa, romeu e julieta. Com um pedaço de goiabada em forma de raio nas mãos, Bowie colocou a iguaria na face. A marca do doce caseiro ficaria eternizada em um de seus discos. No que o velho disse: “fale para esse imbecil parar de estragar comida”.
Naquela noite eu conheci uma versão de David Bowie muito única, muito particular, que pouquíssimas pessoas tiveram a chance de conhecer – apenas eu e aquela humilde família de Apucarana.
No outro dia fomos chamados para ajudar a colocar uma cerca de arame farpado nas redondezas, mas Bowie já não mais podia ficar.
“Eu preciso ir, minha irmã me espera”. Eu pensei, mas que cacete de irmã é essa? Soube depois que ele já começava um relacionamento com a modelo Iman. E não queria dar mancada logo no início do namoro.
Até tentamos marcar alguma outra coisinha (soube que ia ter uma exposição de jet skis na represa Guarapiranga), mas, como acontece em todo namoro novo, a Iman só disse assim:
– É bom você não ir não. Não quero homem meu aprontado por aí com esse BLOODY funcionário Marcelo. Isso aí não vale um kibe do Habib.
Vai com Deus, Bowie.
Bruno Pessa
20/01/2016 — 16:08
Ta explicado pq a vicinal de Apucarana pra Rolândia mudou de nome pra David Robert Jones no fds!