Viajei para o sol, o sal e o céu do Nordeste brasileiro recentemente e me deparei com uma figura um tanto peculiar – para não dizer inusitada: o guia de turismo apocalíptico. Estava em Maceió, capital do Estado de Alagoas, mais especificamente, em busca de algumas praias paradisíacas ao redor da cidade, para engordar um pouco na base da cerveja-latão e frituras.
No microônibus aconchegante e praticamente congelado pelas correntes do ar condicionado, sonolentos turistas ouviam a voz microfonada da personagem tema deste breve relato.
Ele vestia uma daquelas camisetas polo promocionais (geralmente de uso comercial) que, ao contrário de Neymar e Piqué, sustentam uma gola completamente molengata, feito uma bexiga horas antes do aniversário infantil começar. Cores escalafobéticas traziam as marcas da empresa, seu telefone e, é claro, WhatsApp.
Do lado de fora, o sol parecia “carcomer” a lataria do veículo – e o relógio ainda não marcava 8 da matina. Desenrolando o fio do microfone (processo que ele fez em aproximadamente 40 minutos) ele dizia, sem amplificação, “cês tão ferrado, hoje vai ser quente”.
Nosso destino era a simpática Barra de São Miguel, destino amado por casais em lua de mel e alguns nomes da política nacional que, alagoanos que são, mantém casas de veraneio (isso que lá verão é o ano todo né) por ali.
“Som, ah… teste”. Pronto, estava devidamente munido da voz o nosso amado guia. “Meus amigos nós vamos parar na Barra de São Miguel dentro de 15 minutos”…
Um rapaz magro parecia sussurar algo para o profissional.
“O que foi meu filho?”
Extremamente tímido, não conseguia se expressar direito e seus ombros pareciam estar encolhendo, tamanha aflição. A jovem esposa (estavam em lua de mel) já começou a se esconder na poltrona também. Algo estava errado ali.
“Pois diga homem! O que está acontecendo, tá precisando de dinheiro emprestado?” – prosseguia o guia, arrancando gargalhadas e bombando as caixas de som.
Finalmente o rapaz conseguiu se levantar e apontar para a estrada, onde um Posto Ipiranga aparecia em meio às casas praianas.
“Aaaahhh agora eu entendi” – falando ainda mais alto no microfone – “É uma parada emergencial para o número 2? Pois pare aí, Anselmo”. Anselmo era o motorista, que também não escondeu a vergonha diante da cena. O jovem desceu até mancando, tamanho a urgência que ali se configurava. Essa parada para se aliviar certamente será abordada durante anos por sua terapeuta.
De volta ao trecho após o episódio, o guia continuou. Ele era alto e corpulento, seu rosto também era grande e aquadradado. Em alguns ângulos, lembrava o humorista Carlinhos (O Mendigo), do Pânico.
“Como dizia, chegando à Barra, haverá uma jangada que vai levá-los até a Praia do Gunga. No meio, será feita uma parada nos arrecifes onde vocês verão uns peixes ‘sargentinhos’ coloridos e vão tirar fotos”…
As crianças gritaram animadas “Eba!!!” – o jovem rapaz da disenteria esboçou apenas uma tímida sonrisa.
“Agora, eu vou falar algo muito importante para vocês. Uma vez lá nas arrecifes, pelo amor de Deus, NÃO ANDEM NAS PEDRAS. Nas pedras vocês vão escorregar e certamente rasgar o corpo”, alertou. Dei uma risadinha sem graça descontraída, tipo, para quebrar o clima, mas ele prosseguiu.
“Eu estou falando sério. Semana passada uma senhorinha de 70 anos resolveu subir pelas pedras… Ela caiu e se cortou daqui ó (apontando o ombro), até aqui (finalizando nos pulsos)”. O ônibus ficou em silêncio.
“Era tanto sangue que eu tentei estancar com uma boia salva-vidas. Chegava a jorrar na água e os peixes vieram todos para o redor dela, pensando que fosse pãozinho…” – era possível ouvir a respiração pesada dos turistas ao redor. O ar condicionado já não era mais suficiente. O motorista Anselmo, embebido em suor, apertava freneticamente os botões do toca-fitas do busão, na esperança de ou cortar o microfone ou abafar a voz com música.
“E quando eu fui tentar puxá-la de volta para a jangada, assim que peguei no antebraço da vovozinha, o pior aconteceu” – Pai amado, o que havia de piorar – “O osso do seu braço apontou no cotovelo, saindo como uma adaga, pontiagudo, uma imensidão branca molhada em sangue quente”. O rapaz da diarreia vomitou nos pés da esposa, que já dava sinais que ligaria para o advogado para tratar do iminente divórcio. As crianças choravam copiosamente. Eu passei a mão em meu cabelo e notei que eles estavam caindo, tamanho o stress da situação. O motorista Anselmo, soluçando em ansiedade, coitado, precisou parar de lado, no acostamento para respirar um pouco. Já o guia…
“Beleza pessoal! Vamos que o dia ainda é longo, dê o nome aqui quem vai participar da jangadinha lá na Barra”!
*foto de capa: falésias da Praia do Gunga