Foi você quem me fez assim

Overture: Salão do Automóvel 2016

*Overture: Do francês, na música é a introdução instrumental a uma ópera. No Brasil, o termo é traduzido como “dupla sertaneja desconhecida que abre para o pessoal mais famoso”.

Como esperado, pouco antes de chegar na via de acesso ao SP Expo, antigo Centro de Exposições Imigrantes, a fila de carros na rodovia começou a parar. Era o penúltimo dia do Salão do Automóvel 2016 e, certamente, o pessoal ia colar em peso para ficar caminhando entre os estandes das principais marcas de carro do mercado, empoleiradas no gigantesco centro de exposições, que abriga o maior evento do gênero da América Latina.

Em meio ao irritante congestionamento, deixei as janelas abertas, escancaradas. Havia ali um misto de “eu vivo a vida, não tenho medo de ser assaltado” e, também, “está ventando bastante, vou economizar a gasosa do ar condicionado”. Na verdade, quando o carro está no ponto morto e com o ar condicionado desligado, forma-se a errônea percepção de que, finalmente, o veículo está andando de graça, trabalhando para mim – e não o contrário. Acontece o mesmo quando você usa o banheiro no trabalho, só que, nesse caso, parece que você está recebendo para fazer suas necessidades.

– Amigo, quer uma revista grátis?

Naquela altura do campeonato, se ele me oferecesse uma facada, desde que o corte fosse não letal, eu aceitaria.

Peguei logo dois exemplares: uma revista automotiva que não lembro o título e um exemplar da Sexy. “Você deu sorte, essa é a da Geisy Arruda”, me disse o rapaz, no alto de seus 40 anos, com um jeitão meio enrolador, meio faz-tudo.

Obrigado, amigo. Acelerei, pois a fila de carro havia andado uns 40 cm.

– Então, mano, é que nós estamos pedindo uma ajuda para nossa formatura, daí estamos dando a revista e pedindo qualquer colaboração.

Formatura? Eu estava começando a entender o processo… Muito naturalmente, comecei a vasculhar o painel do carro procurando dinheiro – já reparou que todo mundo faz isso e NUNCA ninguém guarda dinheiro nas ranhuras do painel do carro? Daí estava quase abrindo a minha carteira para buscar alguma moeda quando o suposto formando me orientou com um valor.

– Pode ser uns R$ 20, senhor.

Muito obrigado amigo, mas não vai ser dessa vez que vou observar minha querida Geisy em sua versão nude. Lembrei da avó de um amigo meu que simpatizava muito com a artista, desde o início de sua carreira, mas que a chamava erroneamente de “a garota do Unibanco”.

A entrada para o Salão do Automóvel 2016, naquele dia, custava R$ 95. Brotava gente de todos os lados. Congestionamento na Rodovia dos Imigrantes, fila na ponte de acesso ao evento, tempo de espera para estacionar. A paixão pelo objeto carro, mesmo em tempos de crise, acabara de arrastar uma multidão, para dar uma olhada nas máquinas, pagando quase 100 pilas per capita e, como disse um amigo meu, se decepcionando duas vezes: “pois o carro que tenho em casa não lembra os da feira; e porque a mulher que tenho em casa também não lembra as que ficam ao lado dos automóveis expostos”.

Discordo dessa afirmação. Você é linda, minha amada esposa. Beijos. Depois vamos ver certinho esse negócio da decoração da sala de jantar, agora no fim do ano as coisas ficam muito atribuladas nessas lojas de móveis planejados.

Sem falar que é 40 pila de estacionamento – aliás, está novíssimo, recém-entregue. Na minha época aquilo era tudo mato. Eu ia de charrete, às vezes. Quando começaram os primeiros carros, deixei o meu lá estacionado por um tempo e havia tanta natureza em volta que, quando eu retornei, havia uma jaracuçu do brejo enrolada no freio de mão.

Voltando ao fatídico sábado, o impensável aconteceu. Após uns desencontros de informação e um problema intestinal, eis que uma pessoa – cujo ingresso já estava comprado – não pode comparecer ao evento e, acredite, acabei com uma entrada a mais no bolso.

É claro que o instinto mascate falou mais alto. A vontade de ganhar vantagem é intensa, como uma droga pesada que percorre as veias. Vou vender esse convite, é claro. Vou passá-lo pelo preço de entrada. Pondero. Penso em dar chance a todos, na solidariedade, na união. Lembro que o chopp lá dentro custa R$ 10, retomo a ideia da venda. Chego a uma conclusão, “vou vender esse meu ingresso aqui a R$ 70” – julgo ali que R$ 25 de economia, para as mãos do próximo, é um bom ato cristão.

Sinto uma pessoa se aproximar. Aliás, não sei se àquela altura, é possível chamá-lo apenas no singular. Alto e forte (gordo), um sujeito surge em meio a uma galera, provavelmente de excursão do interior. Ele veste uma camisa pólo que está tão apertada que é quase uma tatuagem em seu corpo. Os botões na gola estão todos estourados – por alguns segundos, fico imaginando o último botão sendo arremessado feito um projétil, uma bala perdida e matando um inocente pai de família que ia trabalhar de bicicleta. Esse homem possui uma peculiaridade que até agora me intriga: ele estava lambuzado de graxa, mas apenas nos pés. Era uma graxa escura, mas seus sapatos eram claros. Imaginei esse cara pisando na boca de alguém, engraxando suas mandíbulas com os calcanhares. “Come graxa, seu animal, come!!!”. Esse sujeito simplesmente se aproximou e, com a sutileza de um rinoceronte bebendo água num desses bebedouros de repartição pública, retirou o brilhante ingresso de minhas mãos.

– Toma, te pago R$ 50.

Obrigado, moço. Dobrei a nota no bolso ainda tremendo e fui correndo entrar para o Salão do Automóvel 2016 antes que eu próprio fosse transformado, à força, em algum componente automotivo.  

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