Foi você quem me fez assim

O episódio perdido de Black Mirror

Peguei a conversa já pela metade, mas pude perceber que estavam falando do tal episódio perdido de Black Mirror. Um roteiro esquecido no interior de uma moderníssima fotocopiadora Xerox teria guardado, talvez, a mais bela reflexão futurística proposta pela famosíssima série antológica de ficção científica britânica – pelo menos é assim que estão chamando a atração nas últimas semanas na Netflix, para mim confesso que ainda acho Barrados no Baile mais famosa.

Claro que tive de interromper o bafafá e fazer uso da palavra, pois, modéstia parte, posso falar bastante do referido episódio, pois trabalhei nesse roteiro (o que deixou todos boquiabertos), na extinta função de copidesque.

– Ai, funcionário Marcelo, lá vem você falar que estava lá, tal qual um personagem do finado Chico Anysio.

No que eu complementei: por que é que você não vai cuidar da sua vida, pois sei que o consórcio dessa sua moto – que você até já caiu e ralou inteira – está com umas três parcelas atrasadas.

Pois bem, o grande diferencial desse para os demais episódios de Black Mirror é que, ao contrário do Reino Unido, ele é ambientado em Palmital, interior de São Paulo.

O ano é 2046. A televisão mostra que o mês é outubro, pois o holograma inteligente de Silvio Santos anuncia a Tele-Sena Digital de Dia das Crianças. Aliás, o holograma não é in memoriam, mas apenas de ausência – o Homem do Baú está vivíssimo e passando férias em Celebration, Flórida.

O cenário de 96% do episódio é um moderníssimo boteco pé-sujo de esquina e os outros 4% se passam em um toalete, pois o diretor levou a câmera consigo e a deixou ligada após um mal estar intestinal. Ele não era acostumado com o consumo do iogurte Activia, soube-se mais tarde por meio de sua autobiografia.

Esse bar constitui-se o eixo da trama por uma questão de resistência: João Atílio é o último barman vivo do mundo. Não há mais a figura do dono de bar, do chefia, do reboque de igreja velha que fica atrás do balcão. É algo obsoleto, arcaico. Notou-se, desde o longínquo 2016, uma derrocada na utilidade desse ofício. As bebidas agora são servidas por androides movidos pela plataforma da Apple, que produzem coquetéis perfeitos (menos quando é a época de atualizar o maldito sistema operacional, pois nesse período os robôs passam a entender que todos os pedidos de bebida são gemadas).

Os artigos de primeira necessidade que ficam nos botecos, como caixas de fósforo, detergentes, latas de óleo, etc, também eram vendidos por unidades computadorizadas. O valor era debitado diretamente na conta corrente do usuário e os pertences depositados na íris do cliente – o que às vezes podia ser bastante irritante, como uma vez que um rapaz carregou 2 litros de vinagre na íris e acabou contraindo conjuntivite.

Mas e o ombro amigo do bar? O homem que ouve a todas suas lamúrias no balcão? Pronto: a pergunta é a própria resposta. A empresa de computadores Positivo desenvolveu, em meados dos anos 2030, o balcão de bar auto suficiente. Dor de corno, diferenças salariais na repartição, doenças sexualmente transmissíveis. O balcão já captava tudo o que você estava sentindo e a um toque na superfície touch, passava a dar conselhos e mostrar cases de sucesso: “está vendo a história desse homem que passou por uma traição após um casamento de 20 anos”, narrava uma voz, interpretada pela atriz Renata Sorrah, “se deu muito bem, agora tem uma namorada de 24 anos com uma tatuagem que o está ensinando a perder o medo de montanha russa”, no que aparecia o casal em umas imagens vintage, de 2022, do complexo de parques Disneylândia Brasil, em Olímpia, interior de São Paulo.

Com um segundo toque no balcão inteligente, a sessão de conselhos era interrompida e começava uma emocionante versão do jogo da cobrinha, quenem tinha em celular.

Mas João Atílio ainda é resistente. O comerciante palmitalense é o remanescente na função e, aos 70 anos, luta com unhas e dentes pelo seu legado solitário – o penúltimo barman do mundo era Alceu (do inglês All Yours) Crispiniano, de Vladivostok, na Rússia, que trocou seu boteco pela onda que viria a ser a maior fonte de enriquecimento desde a corrida do ouro em Minas Gerais: as paleterias mexicanas macrobióticas.

Ele está em seu bar, rodeado por calendários em led de mulheres nuas na parede. Elas fazem gestos de sensualidade e tiram a roupa o tempo todo, emitindo xavequinhos aos clientes. Quando o consumidor é menor de idade, mulher ou religioso fervoroso, automaticamente o calendário em led passa a exibir imagens da nova posse do Papa Bento XVI b – sim, meus amigos, Joseph Ratzinger ainda estava na parada e resolveu, assim que deu uma brecha, assumir de novo o papado, em 2041.

Chegam dois clientes robóticos. Eles se aproximam do balcão do bar (o último analógico do mundo, retrátil, feito em carbono) e Atílio logo percebe que são robôs hipsters, ou seja, usam coques masculinos esculpidos em limalha de aço e óculos semelhantes aos que os tataravós de seus bisavós utilizavam, com lentes ensebadas. Por serem hipsters, não consomem macropartículas de sódio nos botecos, mas preferem os antiquados óleos de máquina, como eram na época dos Jetsons. A família Jetson foi uma icônica representante da nova era do pop, seja na TV com o reality Os Jetsons, exibido pelo E!, em que os robôs sarados conviviam em uma casa e, a cada semana, um novo ex-namorado mecatrônico era inserido no convívio, gerando muita confusão. Seja, também, na música, em que o filho caçula da família, precocemente falecido (desativado), atingiu o topo com o título de o Rei do Pop Robótico-Cibernético: Michael Jetson.

Pois bem, um desses robôs pega a oleosa bebida e a sorve lentamente, enquanto encara João Atílio nos olhos. Nisso, o segundo robô, discretamente começa a levantar uma antena parabólica no painel de suas costas… Era uma cilada!

Atílio percebeu, era matuto e muito treinado, graças ao seu Óculos Call of Duty que ele vivia praticando. Debaixo do balcão, pegou uma raridade: uma escopeta calibre 12. A pólvora havia sido banida no planeta Terra após notarem que seu contato com os sistemas de robôs e humanoides causava tétano, mal de Chagas e acne.

Dois tiros foram suficientes PÁ! PÁ! E os robôs teriam sua morte anunciada – em menos de quatro meses eles seriam dados como mortos, com uma mensagem que aparece no seu peito: “equipamento sem conserto, clique para adquirir um novo em condições especiais”.

Só que daí entrava o comercial no roteiro e as outras páginas eu não consegui mais ler, pois o Xerox estava todo escurecido, quenem texto de apostila na época da faculdade, saca?

 

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Foto de Capa: Robot City | Derek Kaczmarczyk | Flickr

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