Foi você quem me fez assim

Equivocou-se David Foster Wallace ou Por Que Amo Cruzeiros – Parte Final

Parte Final

[se você não está entendendo nada dessa fita leia a Parte I e Parte II]

 

 

0045stava, mais uma vez, participando de uma dessas noites de brincadeiras no interior do navio quando fui levado para fora da pequena boate onde se desenrolava uma espécie de quiz – eu teria de esperar do lado de fora, como parte da farra.

Já passava das onze da noite quando a argentina da equipe de animação usou uma barra prateada para puxar a pesada porta, que dava acesso à lateral externa do navio MV Zenith, mais ou menos na altura do 5º andar, onde ficava a boate Secret. Já tinha enxergado o navio pelo lado de fora (havíamos desembarcado em Ilhabela-SP e, depois, Búzios-RJ, para comprar miçangas e sentar nos botecos à beira da praia, na distante esperança de talvez sair sem pagar a conta), porém, estranhamente, ainda não tinha visitado essas laterais, que são como uma sacada, porém bem longas. Eu fiquei escorado nas bordas, que eram feitas de uma espécie de madeira branca, quase uma laca, onde era possível passar a mão por incontáveis parafusos negros. O chão era feito de tiras de madeira, colocadas lado a lado, separadas por uma pequena fenda, como aqueles apoios no piso de vestiários de piscina, usados para escoar a água. Pela primeira vez, desde o embarque no Porto de Santos, me vi sozinho.

Estava com uma boa dose de uísque Ballantines na mão – o oito anos, não se iluda -, em um copo alto. As pedras de gelo já estavam no meio do caminho entre o estado sólido e líquido e a bebida estava naquele exato ponto em que o DJ vira um herói, a garota de franjinha sorri e o PM com braços abertos parece lhe abraçar – e não te dar o famosos carreirão, no jargão policial.

Foi nesse instante que notei a imensidão do mar. Negro, escuro como a noite, mas incrivelmente perceptível. Um vento frio, úmido, respingava gotas no meu topete feito com gel-cola e, ao mesmo tempo, arrepiava minha pele. Era verão e, ainda assim, tinha frio. Ali, não fazia ideia do lugar em que o navio se encontrava. Mas uma coisa sabia, estávamos sob os domínios do oceano. Intenso. Infinito. Ele quem decidia a temperatura, o horário, o rumo do navio. Até mesmo quem viveria ou não. Naquele momento o Mar tinha a mesma função do zelador que guarda as bolas da quadra da molecada: era deus.

Fiquei petrificado sob a escuridão do oceano, assistindo a uma ou outra espuma que ousava se formar e quebrar momentaneamente aquele breu. Estava maravilhado. Do topo do navio sentia a felicidade da surpresa e uma sensação incomparável por estar ali, naquele exato lugar, vivendo a experiência antropológica de um Cruzeiro 5 Noites All Inclusive. Comecei a pensar em voltar, em estar lá uma outra vez. Será que ficaria maravilhado novamente? Será que a tripulação sente isso todo dia, toda noite, cada vez que se depara com o oceano durante seu trabalho? Ou já virou carne de vaca? No período que viveu em Paris, Julio Cortázar confessou em uma carta que, como residente, morria de medo de, algum dia, passar em frente à Catedral de Notre-Dame e dar só uma olhada distraída, já familiarizado com o local. Tinha pavor de ter perdido esse encanto. Eu estava assim também.

Agora só não tenho certeza se isso aconteceu com o Cortázar ou se foi o Zé Bruno, o rapaz que impermeabilizou o meu sofá, que me disse…

 

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004F mesmo andar que abrigava a boate Secret continha, também, um excelente café (com impecáveis espressos italianos da marca Lavazza) e a cereja do bolo, ou, como diria um amigo meu que confunde um pouco as coisas, a cereja do vôlei: o Cassino.

A lei que proíbe jogos de azar no Brasil e, assim, toda atividade de jogatina dessa natureza é antiga, de 1946. Foi assinada por Dutra que, antes de sequer imaginar ser uma rodovia interestadual, foi por um tempo presidente. Desde então, no território brasileiro, não é permitida a exploração comercial dessa romântica atividade. Sem falar que ainda restaram elefantes brancos, como é o caso de cidades como a mineira Lambari, que construiu um mega-cassino como ponto turístico e não teve tempo de rodar uma única roleta (hoje vive de um circuito de águas e de um carnaval universitário-transcendental que deve ser tema de uma próxima narrativa de transformação neste Homem Benigno).

Mas meu amigo: estamos em alto mar. E aqui o Cassino come solto. Enfia dólar, perde dólar. Enfia moeda, perde moeda. Aposta na roleta, perde a aposta. Eis que num caça-níqueis um tanto esquecido, faço minha aposta e… Inacreditável, ganho US$ 5!!!

Enquanto jogo, garçonetes passam com uns croquetes que mais parecem pequenos diamantes de tanto que o óleo brilha na bandeja.

Não penso em comida. Meu corpo deseja o jogo, a roda da sorte. Estaria ali a chance de recuperar o valor da viagem? Será que ganharia uma bolada? Já pensou telefonar para minha mãe dizendo que estava rico?

Perdi os US$ 5 no primeiro giro da roleta.

Olhei para o caixa, corri para pegar mais dinheiro. No caminho me vi perdendo tudo. O dinheiro que tinha no bolso, minha dignidade. Meu pequeno sítio em Atibaia-SP… Desisti. Nunca na vida tive um sítio em Atibaia.

 

 

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hb-Há nos Cruzeiros uma grandiosa tradição artística. Um belíssimo teatro reserva para as 5 noites uma série de apresentações das mais variadas. Shows temáticos, como o !Viva Brasil!, em que clássicos de nosso cancioneiro eram executados pela banda da casa, com auxílio dos dançarinos. Carmem Miranda surgia no palco… BUM! Uma bomba de fumaça reveleva um Ney Matogrosso em sua fase mais perfomática, com um rebolado tão rápido que cheguei a esfregar os olhos para saber se era real – nesse momento o navio deu uma leve cambaleada, nossas cadeiras andaram um pouco, alguns copos caíram e, no palco, Ney deu um salto desequilibrado e já caiu de 4, simulando os passos de uma jaguatirica. Estava acostumado com aquilo.

Um musical off-Broadway, que mais tarde chegou a ser chamado de bota off nisso, era ROCK. Na trama, um monólogo de um sujeito com sotaque narrava a história desse estilo musical,  mesclado com canções e coreografias executadas pela equipe musical do navio. Isso tinha um Q de circo no interior, em que o carinha do globo da morte também vende algodão doce durante o espetáculo. Naquela altura do campeonato o elenco do musical era facilmente reconhecido: tinha visto o Kurt Cobain no Piano Bar tocando Tom Jobim, a Janis Joplin era a própria Rihanna do Fallout: New Vegas, já abordada aqui neste relato, Fred Mercury eu vi tocando maracas na noite caribenha e tenho quase certeza que o Raul Seixas era o tio que ficava dobrando toalhas ao lado da piscina.

Uma bela peça de teatro envolvendo uma dupla de palhaços (do grego clown) uruguaios trazia em forma de humor as comoções da doença. Em um momento muito marcante, o palhaço homem, Budi, descobre-se paraplégico, momento em que seu amor pela palhacinha Sequicido é posto à prova em um longo abraço. O silêncio e a tensão performática hipnotizam a plateia que lota o teatro do Zenith – momento interrompido, apenas, pela canção do Cavalinho, que vinha em altíssimo volume da porta, ocasião em que o público emocionado pôde notar que a rapaziada dOs Beronha estava pegando o elevador ao lado.

 

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004F começo da experiência em um Cruzeiro 5 Noites All Inclusive é de estranhamento. Há muita gente após o embarque, pessoas impacientes perambulando por filas até chegar às cabines. O interior de um navio desse naipe lembra um hotel antigo, clássico, cheio de espelhos e corrimãos brilhantes, com um carpete espesso, mas incrivelmente limpo. Aliás, a limpeza é uma máxima no código de honra dessa turma. A todo momento é possível perceber o cheiro perfumado de produtos desinfetantes, aquela sensação quando você chega em seu apartamento momentos depois dele ter sido encerado. Isso em tudo, nos quartos, corredores, salas de lazer, banheiros.

Ah, os banheiros. Eu arriscaria dizer que, fora os lavabos particulares, das cabines, um navio do porte do Zenith deve ter uns cem banheiros. É impressionante a forma como eles se multiplicam. Às vezes são grandiosos e acompanham a decoração da embarcação, outras são totalmente diferentes, como se fossem uma cápsula do futuro enfiada ali – e há ainda os que classifiquei de secretos. Há vários banheiros em locais estratégicos, que só os experts na arte do WC podem perceber.

Ao lado da boate Secret, por exemplo, há um grande e pesado vaso ornamental, pois acredite, atrás dele há uma portinha e um banheiro. Praticamente impossível de entrar, mas lindo por dentro, uma pequena joia da arte sanitária. Na piscina, o piso menos sensato de toda viagem, a vontade de urinar é uma constante (e só piora conforme as milhas náuticas são percorridas). Há momentos em que a fila é tão grande para mijar que dá a impressão que estão colhendo assinaturas e autenticações à beira do mictório. Pois acredite você que encontrei uma pequena privada escondida atrás da ducha. Se a vida fosse um Xbox, certeza que faria o barulhinho de achievement.

Por fim, um banheiro curioso, ao lado do teatro. Grande e com detalhes em mármore, guardava uma curiosidade: sentado à privada, era possível acompanhar com boa qualidade de som, o que ocorria no palco (não me perguntem por onde vinham as ondas sonoras, por favor). Foi de lá, por exemplo, que pude ouvir com tristeza que no espetáculo ROCK fizeram uma homenagem ao “rockeiro” brasileiro Tim Maia – soube depois que a produção musical era argentina.

 

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0054equila, vodka Stolishnaya, uísque com água com gás, tequila de novo, chopp (bom) tirado na hora, espumante gelado, batidas com sucos deliciosos vindos de contagiantes bisnagas de plástico na mão do barman. Misture isso a sol torrando, brisa do mar e David Guetta rolando pelo DJ do navio, forçadamente mixado com 60 Dias Apaixonado na caixa de som portátil dos meninos. O NAVIO ESTAVA SENDO MOÍDO.

Porém algo destoava do cenário de farra: um jovem muito agradável, magrinho e tímido, cujo visual não consegui definir mentalmente se era o do cantor Silvio Brito quando jovem ou do Guilherme Arantes velho. Esse menino era tão gente boa, tão amável que, em uma conversa sobre camarões, sem perceber, o chamei de “filho”.

Pois bem, esse sujeito, cujo nome não me recordo. Estava só de leve, dando umas bicadas no Amarula. Me explicou delicadamente o porquê: “não estou bebendo muito pois hoje à noite devo meter“.

Creio que seja um pouco exagerada essa versão que os Cruzeiros All Inclusive são a mistura ideal entre Calígula e Titanic. É claro que, o pessoal que vai solteiro para um passeio desses, não deixa de estar entrando numa espécie de Rage In The Cage, pois não há para onde correr, mas também não é pra tanto.

Me falaram que nos tais cruzeiros universitários tendem a rolar mais chances de se dar bem. Mas duvido muito, já que parte do tempo essa molecada às vezes tem tarefa de escola, estudar para a bimestral, etc.

Até lembrei de um amigo vacilão que esteve em um cruzeiro e xavecou, durante todas as 5 noites All Inclusive, uma bela morena, insistentemente. Na última noite, ele desabafou que queria muito ficar com ela… Ela disse que sim, e deu o preço: 100 dólares. O cidadão não percebeu, nas cinco noites que se passaram, que o buraco ali era mais embaixo. “Mas você não me perguntou”, disse a garota. Ele, revoltadíssimo e com os valores ofendidos, subiu para sua cabine pisando duro. Depois se arrependeu e dormiu com US$ 200 no bolso da bermuda cargo.

 

SUGERIMOS QUE PARA CONTINUAR A LEITURA DÊ PLAY NA CANÇÃO

 

004Das, no fim das contas, todos nós dormimos um pouco arrependidos. Na outra manhã, logo às 8h, uma voz feminina com sotaque espanhol no sistema de som interno anunciava que era hora de acordar. Pedia que deixássemos nossas malas “en la porta de la cabina” e que descêssemos para “uno muy rápido breakfast“. O último.

Sabe, vou falar pra vocês, muita gente critica essa opção de fazer um cruzeiro. Diz que é coisa de pobre, aliás, da nova classe média, que é uma opção muito enlatada, que são exageros de quem não tem classe, ou mesmo, criatividade para um roteiro melhor.

É difícil a vida de Cruzeiro All Inclusive em dias em que o chique é ficar batendo perna na Europa debaixo do mormaço, queimando o lábio na friaca, andando de bicicleta velha e pagando R$ 60 a hora, comprar uns bourdeaux no Carrefour para enquadrar ele no Instagram. Hoje o turismo é muito mais ligado à careta que você vai fazer ao lado da Gioconda (e do segurança mal-humorado que acabou de dobrar plantão, colado na tela) do que às sensações e experimentações que o processo da viagem resulta.

Nesse âmbito quem sou eu para falar o que para vocês? Não estou aqui para dar lição de moral em ninguém. Cê acha… Se tu vê o meu talão de prestações começa a chorar e vai de joelhos até Aparecida do Norte.

Mas posso dizer, de coração, que foi muito gratificante para mim passar os últimos cinco dias apenas preocupado com os horários das refeições, com o tanto de gelo que tinha na bebida, se tomaria ou não ou décimo espresso naquela manhã. Foi inenarrável respirar, por quase uma semana, a vida do navio. Enxergar a vitalidade e, por que não, os sonhos sob as tatuagens da animadora Rihanna do Fallout: New Vegas; os obstáculos e as vitórias daquela turma da loja de materiais de construção que, apesar do guia que força um pouco a amizade, fizeram por merecer aqueles dias de descanso, por terem trabalhado feito doidos no ano que passou – eles estavam brindando ali o seu suor.

Enfim, foram dias plenos, intermináveis como as gargalhadas que vinham daquela galera dos Beronha, que encenavam naquele momento, o invejável frenesi de quando se é jovem e quando se tem uma turma da pesada, daquelas que só respira quando acaba a bebida, ou quando a equipe de segurança resolve agir.

O Cruzeiro All Inclusive durou 5 noites, mas acreditem se quiser, se colocarmos tudo isso no papel, como estou fazendo nesse exato momento para vocês, veremos que muito mais que isso, eu passei ali 5 vidas.

 

Fim.

 

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