Parte II

[se você não está entendendo nada dessa fita leia a Parte I]

 

 

“Essa mulher enlouqueceu. Ela quer montar em cima de mim.

Ela pirou de vez. Tá pensando que eu sou seu cavalinho”

 

hb-Como é louca essa coisa da nossa memória vincular automaticamente alguma música com passagens de nossas vidas. A canção que lembra o primeiro beijo, a primeira fossa, o primeiro cheque de terceiro trocado. Quando moleque, lembro de ter passado uma semana em uma casa de praia horrível em Caraguatatuba, ocasião em que choveu por 7 dias e 7 noites. A chuva caía lá fora e o rádio tocava dentro da casa, enfurnada com um bando de farofeiros. A música: aquela canção infernal do Fagner cujo eu-lírico é um peixe, para em seu límpido aquário mergulhar. Jesus, Maria, José, quando ouço essa música na GazetaFM, o cheiro de protetor solar misturado a mofo vem automaticamente à memória.

Pois bem, essa música do cavalinho eu já conhecia, mas foi ela que ouvi na fila do embarque, vinda de uma turminha emblemática, que voltaria a participar de meu Cruzeiro 5 noites All Inclusive em muito breve. Eram Os Beronha.

Beronha é a mosca fêmea que tá gordona, puro ovo dentro do bucho. Por algum motivo um grupo de amigos (juro que não sei dizer o número total, pois eles se multiplicavam, tal qual o inseto voador) da cidade de Itápolis, no interior de São Paulo, se reuniram para uma farra no navio. Soube mais tarde que era o quarto cruzeiro que faziam juntos, a mesma turma, o mesmo navio, com a mesma boneca inflável em trajes menores que era carregada em cada centímetro da gigantesca embarcação. Esse ano havia um plus: uma potente caixa de som amplificada recarregável, que com umas horas na tomada, garantia um bom tempo de som altíssimo. Somada a um microfone sem fio plugado na mão dos Beronha, resultava em O Declínio do Império Americano, de Denys Arcand.

Foi dessa caixa de som que vinha a música do cavalinho. Ingênuo e subindo ansiosamente no MV Zenith, mal sabia eu que ainda ouviria essa canção, em volume máximo, incontáveis vezes durante o passeio.

 

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0041lém dos animadíssimos comparsas dos Beronha, notei outras personagens interessantes enquanto embarcava. Pensativa e praticamente em outro planeta, uma garota de estatura baixa, com um estilo de penteado e tom de pele que a faziam lembrar da diva Rihanna, mas com uma pegada mais cyberpunk. Passei a chamá-la mentalmente de a Rihanna do Fallout: New Vegas. Ela destoava completamente de toda a galera que estava para embaracar, era um enigma. Dei uma viajada e comecei a pensar em como seria o Chris Brown do Fallout: New Vegas, mas os ecos da Lei Maria da Penha me fizeram interromper o assunto.

Com uma animação mais contida, como a do garoto que espera o primeiro Playstation e abre o embrulho e se depara com um relógio CASIO, um grupo de umas vinte pessoas embarcava usando a mesma camiseta. A estampa, em transfer, era de uma grande loja de materiais de construção. Ao que tudo indica, a viagem premiava os melhores do estabelecimento e misturava idades e funções. Ali tinha da mocinha da televendas ao especialista em caixas d’água. Imagino que o freio de mão puxado da turma pode estar ligado ao fato que eles estavam sozinhos, sem família ou acompanhante. Toda a dinâmica era monitorada por um cidadão bem magrelo, cuja animação me fazia lembrar constantemente da Maria Madalena em Êxtase, de Caravaggio. Esse figura, com um daqueles telefones auriculares ridículos, tirava fotos e ensaiava gritos de guerra com a turma de empregados. Isso certamente ia parar em um jornal mural interno na loja e fomentar a inveja entre os não contemplados. Eu estava bem animado para o cruzeiro, mas nos sorrisos falsos dessa turminha eu podia arriscar que eles imaginavam ali o próprio Bateumouche.

 

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0054al qual na vinda dos imigrantes europeus nos vapores do início do século passado, ao chegar na Hospedaria dos Imigrantes, em São Paulo, antes de qualquer burocracia eles eram empanturrados de comida. Em um cruzeiro acontece da mesma forma. Após a longa espera pelo desembarque dos passageiros anteriores, eles já te encaminham para o restaurante central para que você coma feito um padre em cidade interiorana – lembrem-se que eu estava praticamente em jejum e sob forte efeito do maldito comprimido anti-enjoo.

O desembarque anterior em si, no meu caso, foi um tanto dramático. O Zenith acabava de voltar do Rock’n Roll Cruise, ou algo assim: cinco noites all inclusive para 1,2 mil metaleiros. O porto foi tomado por cabelos longos em corte fio reto, camisas pretas, coletes de moto clube e camisetas tão coladas em rapazes gordinhos que davam a impressão de terem tentado enfiar São Paulo dentro Jundiaí, tamanho o aperto da massa adiposa no tecido.

Mas como bem narrou o equivocado David Foster Wallace, em um cruzeiro dessa natureza, o serviço é impecável. Arrumadeiras, em sua maioria colombianas e chilenas, deram um trato #violento na algazarra deixada pelos metaleiros. Minha pequena cabine estava muito limpa e cheirosíssima, mas longe de parecer com um quarto. Dá a impressão de ser um misto entre quarto de um bom hospital e uma cápsula espacial – o que dá para passar suas cinco noites tranquilamente, ainda mais levando em conta o open bar e a eterna sensação de torpor do álcool/comprimido Meclin.

 

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0041comida. Muito mais que uma embarcação de aço, o navio é um amontoado de comida que flutua no oceano atlântico. Alimentos que são preparados, grelhados, assados, marinados e fritos 24 horas por dia durante todo o percurso. O bifê central, gigantesco, é o que serve o café da manhã, o almoço e o jantar. As refeições da noite são as mais tranquilas nesse bifê, pois geralmente há o restaurante de gala para dividir os passageiros, ou então o caso daquele cidadão que comeu e bebeu feito um javaporco durante o dia e passará a noite deitado na cama ou sentado em um vaso sanitário.

O bifê central tem a incrível missão de agradar a todas nacionalidades. Por isso a variedade de culturas alimentares é muito grande, o que reduz um pouco as opções de pratos de cada nacionalidade, como é o caso da comida brasileira – daí vem aquele seu tio e diz “nunca mais me meto nisso, passei cinco dias comendo pão com ovo frito”.

É preciso saber garimpar: há sempre carne de porco em diversos pratos, batata frita, bacon, salsicha, hambúrgueres, boas saladas, massas deliciosas. Sofri um pouco com o alecrim. Tenho pavor de alecrim. Desde que morando numa república um amigo assou um frango com tanto alecrim que eu fique arrotando essa desgraça por três dias e, no final do terceiro dia, nasceu uma rama do tempero atrás da minha orelha.

 

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0044evidamente alimentado, foi o tempo de tirar a camisa, botar uma bermuda com temas de surf e subir para o 6º andar do Zenith, onde ficam as piscinas, o bar e o fervo. O navio tem oito andares no total, mas é o 6º que dá acesso a esse espaço maior para o lazer. O 7º é o bifê central e o 8º um serviço de SPA que, como não estava incluído no pacote, não quis nem ver como era. Você tá doido.

No bar da piscina consegui pegar minha bebida em pouquíssimos segundos. Disse pro tio do bar que queria dar um grau no álcool, mas que também não me derrubasse tanto pois tinha um CRUZEIRO PARA MOER. Ele misturou tequila, suco de laranja, uma camada de groselha e muito gelo. Botei aquilo na boca e o sabor era tão intenso, mas ao mesmo tempo tão doce, que dei um soco no ar de tanta alegria. A manobra derrubou parte de minha bebida bem em cima de um daqueles coitados da loja de materiais de construção. Mas parece que salvei seu dia, pois ele foi autorizado a tirar aquela camiseta ridícula. E da minha parte ficou sussa, né, pois como era All Inclusive, nem doeu. Me vê outra Tequila Sunrise aí ô, meu sobrinho.

Bebida na mão eu logo fui lá para os arredores da piscina. Estava lotado. Era ali que dava para perceber o tanto de gente que teve a mesma ideia que eu. A música do navio era altíssima e brigava de igual para igual com os decibéis da caixa de som portátil dos Beronha. Naquele momento tudo era festa.

Eis que uma voz feminina estridente surge no microfone. “Aeee pessoal agora desliga essa porcaria de caixa de som porque a festa no MV Zenith VAI-CO-ME-ÇARRRRR” e logo entrou a música do Show das Poderosas, da Anitta (como vocês já devem imaginar a essa altura, não a Malfati).

Entram os animadores/dançarinos, de costa no palco. Uma garota baixinha e dois mais compridos, musculosos, meio afeminados, mas que dançam ferozmente como se aquele navio fosse realmente afundar a qualquer momento. Era uma coreografia cheia de som e fúria – e de tatuagens exageradas, cujas últimas sessões jamais foram sequer agendadas.

Epa! Eu conheço essa garota baixinha. Acreditem se quiser: esse furacão em forma de gente era ninguém menos que a Rihanna do Fallout: New Vegas. Por isso ela estava tão alienada no porto, ela estava batendo cartão, pô. Era uma funcionária do navio.

“E agora, para a gente começar a festa, eu gostaria de um voluntário para vir aqui na frent…”

Não deixei ela nem terminar a frase. E lá de trás dei um grito, aqui Rihanna minha filha, EU quero participar dessa brincadeira em alto mar (como se o fato de estar em alto mar fizesse alguma diferença).

Juntamente com outros babacas que estavam na embarcação, participamos de um campeonato de caipirinhas ou algo do tipo. Ao término, a animadora cyberpunk veio até mim e perguntou, “de onde você é seu maluco”, ocasião que respondi, como sempre, que era de Pirajuí: a cidade que Bauru fica perto. Notei alguns risos contidos no convés.

Encerrada minha participação, caminhei apenas dois passos em direção à próxima bebida do bar, quando fui interrompido por uma senhora, nos seus 60 anos, aos prantos e quase de joelhos: “Meu Deus do céu! Você é de Pirajuí? Sou nascida em Usina Miranda, saí de lá criança” – e me abraçou.

A Usina Miranda era uma gigantesca colônia rural que durante décadas representou uma das principais atividades comerciais da região de Pirajuí.

Tudo isso em alto mar. Tudo isso após duas Tequilas Sunrise e um prato de comida temperada com algum alecrim. Blerght.

 

 

continua…