Foi você quem me fez assim

Relatos sobre uma certa encenação da Via Sacra

Lembro como se fosse ontem do dia que foram me chamar para participar de uma encenação da Via Sacra. Faltavam uns dois meses para a semana santa e a galera estava programando os ensaios. Ia ser coisa grande, ia envolver uns 50 atores — até porque naquelas épocas haviam muitos figurantes pelas ruas de Jerusalém né?

Topei na hora, queria encarar o desafio. A via crucis é o trajeto por onde Jesus Cristo passou em seus momentos finais, do seu julgamento até a morte, crucificado.

Por falar na audiência, fui escalado para fazer o papel de Pôncio Pilatos. Terminado o julgamento, deveria correr escondido pelas ruas da cidade de Pirajuí até o lugar onde seria o calvário, pois interpretaria também um dos dois ladrões pregados com Jesus.

No grande dia a encenação começou com o julgamento. Centenas de pessoas na rua, a praça estava tomada de católicos esperando a ação. A minha roupa de Pilatos lembrava um pouco a do personagem Naruto (a figurinista não foi muito feliz naquela edição) e os detalhes brilhantes davam um ar um tanto alienígena ao estadista romano.

A multidão que veio acompanhar o evento assustou também os nossos figurantes, vestidos com trajes do povo da  época. Nos ensaios eles eram uma horda insandecida. Na hora da peça, pareciam coroinhas.

“Façam entrar o rei dos judeus!”, eu gritei para meus serviçais. Nisso eles trazem o Jesus, acabado, com um semblante que mostrava um sofrimento muito real — até eu fiquei comovido. Na verdade, ele estava realmente sofrendo. O sangue cenográfico que bolaram lá nos bastidores tinha alguma mistura que, quando entrava em contato com os olhos, queimava feito um vinagre.

“Nesta data, é por tradição que eu liberte um prisioneiro: solto o rei dos judeus ou o criminoso Barrabás?”, perguntei para os envergonhados figurantes. Alguns constrangedores segundos de silêncio foram interrompidos por um salvador da pátria que gritou: “Barrabás, solte o Barrabás”, no que todos emendaram o coro. A cena estava salva! Aliás, mais ou menos. O ator que fazia o Barrabás,  cuja única função era entrar feliz com as mãos para cima, comemorando a liberdade, apareceu em cena usando um tênis All Star. Se explicou depois, dizendo que o chão estava muito quente para ficar descalço.

Começa a via crucis propriamente dita. Com um tronco nas costas, o nosso Jesus sai cambaleando enquanto é açoitado por soldados romanos e sanguinários carrascos. Sanguinários é modo de dizer, como tivemos uma súbita falta de atores no final dos ensaios, os torturadores tinham entre 8 e 12 anos de idade. As roupas de carrasco mais pareciam fantasias do Zé Gotinha.

No meio do caminho, o melhor de nossos atores começa a incitar a população a xingar o Cristo — naquele momento o povo o condenava. Esse ator era muito bom e convincente, tanto que na edição seguinte ele foi promovido a Pilatos. Gritava com tanta determinação e veracidade que, em certo momento, foi atacado pelo guarda-chuva de uma senhora, chocada com tamanha blasfêmia. Ele é um ator, é uma interpretação, disseram. Tarde demais, outras cinco beatas iniciaram as agressões com puxões de cabelo e apertos no braço. Queriam que ele parasse com as ofensas ao homem com a cruz. A Polícia Militar foi chamada para conter o tumulto.

 

Cenas das ruas

Um dos momentos mais emblemáticos do sofrimento de Cristo acontece no momento em que Verônica, uma piedosa mulher de Jerusalém sai do meio do público e vai enxugar o sangue e o suor de seu rosto com um pano branco, onde sua face fica reproduzida. Pois bem, um dos guardas romanos de nosso teatro não tinha participado de nenhum ensaio, por falta de tempo. No entanto, tinha assumido uma postura bem autoritária durante a encenação, estava agindo como um tirano representante do império. Estava indo tudo bem até que ele viu uma mulher (Verônica) sair do meio do povo e se dirigir até o Jesus, que já estava em posição de ter o rosto enxugado. O soldado entendeu aquilo como uma contravenção e, enquanto a mulher começava a cantar, ele não pensou duas vezes: foi até ela e fez uma abordagem. “O que a senhora pensa que está fazendo, pode circular, vamos vamos, de volta para o seu lugar”.

Até o público estranhou a “geral” tomada por Verônica. Nisso um outro soldado foi até ele, deu-lhe uma bronca e, daí sim, puxou novamente a importante personagem para continuar seu ato.

Poucos momentos antes da chegada ao Calvário, ou Gólgota, a colina onde nosso Jesus da peça seria pregado na cruz, ele encontra um grupo de mulheres, as poucas que naquele momento sofriam com sua condenação. Dando murros no peito, elas falam em tom de lamento, repetidas vezes. “Jesus, Jesus, Jesus, Jesus”. O combinado é que elas falariam, juntas, sete vezes a palavra. “Jesus, Jesus, Jesus, Jesus, Jesus”. Já passava da vigésima vez que citavam o seu nome quando o próprio mártir, com a cruz nas costas, discretamente olha para elas e, com a boca semifechada, diz: “Chega”.

 

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A crucificação

Volto um pouco para os bastidores. Os marceneiros contratados para confeccionar a cruz de madeira tinham um ar meio kamikaze. A primeira versão do cenário tinha mais de 2 metros de altura. E o buraco que a fixaria, por sua vez, era muito raso. Assim que no ensaio levantaram o ator (de pequena estatura) pela primeira vez, ao invés de crucificado ele foi literamente catapultado. Foi uma correria só, mas ninguém se feriu.

A cruz foi ajustada, mas ainda assim, ficou alta. Eu, interpretando o mau ladrão, fiquei agarrado nos pregos dela com a mesma sensação que tento me fixar nos carrinhos de montanha-russa em parques de diversão.

Seguiram-se os diálogos e, incrivelmente, os momentos na cruz, somado ao pôr-do-sol e a música que saía de umas caixas de som no topo da igreja deram um tom sublime ao momento.

Maria se aproximou, desceram o Cristo da cruz e, na frente do público extremamente emocionado, configuraram a cena da mãe vendo o filho morto, eternizada na arte sob o nome pietá.

Tudo ia muito bem até o momento final da Via Sacra, quando ele é levado do calvário para ser enterrado e, logo em seguida, ressuscitar. Essa cena não havia sido ensaiada. Foram escalados dois brutamontes para carregar o corpo sem maiores dificuldades. Assim que o enrolaram em um lençol branco, um improviso ocorreu. Ao invés de conduzi-lo segurando pelo tronco e pernas, um dos homens enrolou as pontas do lençol como se fosse um papel de bala. O andar deles era lento e contemplativo, o pano enrolado torceu os cabelos do ator, que dava pequenos gritos de dor. A cada passo, ele gemia um pouco mais.

Enfim, perto do que Ele passou pela gente, perder uns fios de cabelo não é nada, certo?

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