Foi você quem me fez assim

Urge uma reflexão sobre o uso de barba

Não faz nem muito tempo se você avistasse na rua um sujeito bem barbudo, com o cabelo baixo e um paletó de brim, logo em seguida estacionava uma perua Kombi da paróquia para servir-lhe um sopão da madrugada. Hoje em dia as coisas mudaram, a barba atingiu o ponto mais alto do mainstream e esse mesmo sujeito barbudo está numa foto do Instagram abraçado com sua ex.

O primeiro registro oficial de doutrinas ou diretrizes para o uso da barba surge em 1929, na Itália, no que foi conhecido como Tratado de Latão. Pouco depois, a realização desse simpósio atrapalharia o Tratado de Latrão, que teve que mudar de nome colocando um “R” meio estranho no evento oficial que criou o estado do Vaticano. Mais ou menos igual ao que aconteceu com aquelas duas Comic-Cons aqui no Brasil.

A primeira Bula Barbal traz em seus parâmetros diretrizes ainda muito ligadas ao iluminismo capilar, movimento estético que surge na França no séc. XVII e que defende o crescimento dos pelos corporais com base no uso da razão. O que seria algo do tipo: “deixa do jeito que você quiser, mas depois tu trata de arcar com as consequências desse cabelo de gato preto morto aí”.

Nesse vai e volta da tendência facial, alguns espécimes barbados começam aparecer ADIVINHA ONDE? Ganhou um período no Motel Fascínios quem respondeu: nos subúrbios de Nova Iorque. Eu tenho uma raiva da criatividade dessa turma nesses bairros distantes do chamado “boqueirão” de Manhattan. Como eles tem uma hora de trem até chegar no centrão, eles ficam inventando besteira. É aplicativo, é corte de cabelo, é adesivo criativo. Larga isso quieto, pô.

O resultado a gente vê na prática. O pai chega hoje aos 60 anos inteirão, jogando bola, academia, pilates. Barba feita, cara limpa, camiseta pólo Tommy, daí desce na sala, tá a filha – que ele lutou tanto para educar, mandou para a Disney nos 15 anos, pegou um dólar alto para caramba na época – com um sujeito cujo visual o deixa mais velho que o próprio papai, quenem esse cidadão da propaganda do HOTEL DR. JIVAGO. A figura paterna não entende. Vai para a terapia externar isso? Não, culpa a esposa, que teve caxumba durante a gravidez. “Sabia que alguma coisa ia dar errado mais pra frente”.

No século XVIII, a mãe Rússia ainda estava novinha, cheirando a uma mistura entre os conquistadors mongóis e o Império Bizantino. Nesse momento, o czar Pedro, dito o Grande, sai na surdina e vai para a Holanda, aprender qualé que era a onda das construções de navios dessa galera. Quando volta, traz também os costumes ocidentais. Aquelas barbas, vistosas, longas, que gastam um bronze danado na produção das esculturas, dão lugar ao rosto escanhoado.

Nesse momento o conceito do sujeito polido, barbeado, cabelo penteado e mão para trás estava em altíssima moda. É a prova histórica do quão cíclica é essa corrente visual que retorna agora com tudo para o ocidente e, principalmente, para as cafeterias com wi-fi.

Ninguém mais faz barba. Estive em um hipermercado e a atendente do caixa teve dificuldade em me responder se tinham lâminas para o barbeador – era como pedir peças para um carburador numa concessionária. Gigantes do mercado apostam em grandes nomes do esporte e na depilação feminina para manter-se com as portas abertas – como já disse por aqui, o que ainda salva o segmento de lâminas para o rosto é o bom e velho funcionalismo público.

A pele masculina no queixo e ao redor dos lábios já não mais conhece o contato com a luz do Sol. Após a retirada dos pelos alguns pacientes relataram desidratação e até dores na região cervical, já acostumada com o peso.

A sociedade já aceitou, inclusive, o acúmulo de resíduos alimentares e cosméticos na barbixa. Numa certa ocasião, um grande amigo foi convidado a passar um aspirador de pó nela. Hoje em dia não mais. Esposas já não ligam e, ao dar o tradicional selinho da chegada do trabalho, comentam: “ué você comeu algo com coentro hoje”?

É necessário pontuar, no entanto, que a prática favoreceu os portadores da chamada barba endêmica, que é o sujeito que faz a barba no chuveiro e, ao terminar de se enxugar, já está com um bigodinho crescendo, de leve. Para esse cidadão que vive em guerra contra a horda de pelos do próprio corpo, o meu grito de apoio. Já que deve ser um saco ficar se depilando com cera quente ou então ter que passar veneno Mata Mato Randap™ no próprio lombo. Ho!

Enfim, para o restante, cabe a análise cuidadosa para saber se o que acontece diante de nossos olhos é uma cópia quase que fordista de um visual em evidência, ou se há algum tipo de sentimento mais forte e profundo nessa brusca mudança. O que move multidões masculinas a deixar de lado o rosto, sua própria identidade da infância, para preencher com um símbolo histórico, sim, mas que também cobre esses traços fundamentais do ser. Afinal, do que estamos nos escondendo?

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