Previously in Rapsódia de Quermesse

Meu amigo Jacques passou em casa e fomos para a Quermesse de Balbinos
√ O safado se envolveu com uma gostosona de calça branca
√ Saiu uma briga e ele estava no meio, cheio de sangue
√ O sangue não era dele

 

O sangue não era dele! Cacete esse sangue não é dele. “Claro que não, esse sangue é da Jeniffer. Levaram ela sangrando muito”, disse a mina de legging branca. Ai caramba e agora… Tinha mais gente envolvida. Quem seria essa garota? Porra, Jacques o que você aprontou cara… E deve ter dado merda, afinal, está escondido atrás desse ônibus.

Era pior do que eu imaginava. Jacques realmente ia dar uns cato na linda morena (agora um pouco chapiscada de sangue) que – soube ali mesmo – se chama Anna. Sem falar para ninguém o mala saiu com a mina do lugar onde estávamos e foi buscar o carro para irem a um lugar mais tranquilo (as opções são bem limitadas, tendo em vista o monopólio no setor de motelaria na região). Pelo que me contaram, o agarra-agarra estava tão intenso dentro do veículo – a famigerada trocação de marcha  – que ele ficou distraído no volante e, ao passar pela rua lateral da quermesse, atropelou Jennifer, uma simpática cadelinha vira-latas, daquelas de cor marrom, que vive na rua e é um xodó da cidade inteira. Caramba, essa  mania de botar nome de gente em cachorro…

Ou seja. Pior ainda que se envolver numa briga e sangrar alguém durante a peleja, o infeliz do meu amigo tinha atropelado uma amada cachorra indefesa. “Ela estava prenha”. Pelo amor de Deus, Anna, pare de me dar notícia ruim… Eu só queria terminar de comer meu espetão de carne e, quem sabe, jogar uma ficha na barraca da pesca.

Aquela confusão que eu vi de longe, tênis voando, garrafa quebrando, era a população tentando linchar o Jacques. A coisa acalmou um pouco assim que perceberam que a cadela ainda estava viva, mas agonizante, e começaram a fazer uma mobilização para tentar salvar a vida tanto dela, quanto dos filhotes. Em meio a juras de morte, o casal conseguiu escapar e vir para trás do ônibus.

“Certeza que já estão atrás da gente, ai meu Deus, onde fui me meter…” Calma, Anna, tenho que tentar pegar o carro e tirar o Jacques daqui. “Você não vai conseguir passar pela multidão e pegar justamente a arma do crime”. Alguém tem que tentar, tô errado. TÔ ERRADO?

Tirei debaixo do ônibus rural uns papelões de caixa de bicicleta Caloi™, que deviam ser usados para proteger as rodas de mijo de cachorro – ironicamente, talvez até da própria Jennifer…

***

Com o papelão, cobri os dois ali no escuro na esperança de tê-los camuflado. Era questão de tempo até que os encontrassem. Tentei voltar à quermesse pela rua do lado, passei em frente a um casal que se agarrava encostado numa árvore, alheios a todo o cenário que se desenrolava – inclusive a um jovem bebum que urinava ali mesmo, simulando uma Fontana de Trevi para os apaixonados.

Cheguei na rua lateral, que era onde estavam as barracas de comes e bebes. Eram quatro ou cinco pequenas estruturas de ferro, ocupadas por vendedores que não são da cidade, mas sim o tipo de comerciantes que rodam todo o Brasil nesses eventos.

A primeira barraca vendia doces de toda espécie, maravilhosas tortas de chocolate, bolo floresta negra, bolo de beijinho, todos cobertos com um véu branco, que lembrava muito um artigo funerário, mas que ali estava para proteger de uma ou outra mosca-verde que gostasse de quermesse.

Em seguida, uma segunda barraca servia sandubas de linguiça calabresa, feitas em um tacho maravilhoso, que espumava uma gordura brilhante, mágica, que serviria de inspiração para os livros de J.K.Rowling se ela ainda estivesse na pindaíba. No balcão, uma estufa de vidro carregava um gigantesco pernil, temperado com cebolas e pimentões, que se encarado de frente, gerava aquela estranha impressão de já tê-lo visto antes, a mesma de quando você encontra uma pessoa familiar na rua e tenta buscar na mente de onde a conheceu – geralmente era do seu grupo de Crisma.

Passei pelas duas até chegar na terceira, chamada de Barraca de Capeta, não aquele que é o nemesis de Cristo, mas a batida, de gosto doce e forte, que cada ponto turístico do Brasil costuma fazer de um jeito – mas que sempre é chamada de bebida típica criada naquele lugar. No local um dos vendedores tentava turbinar as vendas fazendo um pequeno número de stand up – apresentação pública de humor que já foi chamada de O mal do século pelos romancistas pós-11/9. Mas ao contrário da maioria dos comediantes desse nicho, ele não estava de cara limpa. Ele usava um figurino que mesclava a figura de um menestrel, com a de um integrante daquela extinta banda Teatro Mágico que tivesse acabado de trocar um pneu de trator.

Usando rimas que me envergonham a reprodução, esse vagabundo escolheu justo a mim para fazer suas gracinhas – logo eu que sempre tive medo de sentar na frente em teatros, missas e cursos de reciclagem na firma, justamente para não ser questionado de absolutamente nada.

Ele se apresentou como Mentor, o guardião do sabor, o que me deu uma raiva ainda maior. Perguntou que time eu torcia e, assim que disse que é era o São Paulo Futebol Clube ele puxou um jocoso “Hummmmmmmmmmmmmmm” da plateia.

Disse que estava com muita pressa, mas ele fingiu não ouvir. Já deu início a uma gincana em que ele anunciava nomes de bebida e eu tinha que adivinhar os ingredientes. Cada vez que eu errava, era obrigado a virar um copo americano com o tal capeta na goela. “O que vai no rabo-de-galo?” Errei. “O que vai no bombeirinho?” Errei. Não estava com cabeça para isso, estava para assinar a certidão de óbito do meu amigo, pôxa.

A certa altura eu já estava completamente lesado por aquela bebida horrível e o público tinha esvaziado um pouco a barraca quando percebi, na rua de cima, uns 15 caras descendo a rua, alguns tinham porretes e outro, uma daquelas bregas caixinhas de som bluetooth nas mãos. Numa atitude precipitada, puxei Mentor pelo seu colarinho de palhaço e pedi ajuda. Falei da cadela atropelada. Disse que, assim como ele, eu também não era dali, mas um forasteiro de uma terra 16 km distante. Ele me deu um sorriso irônico e me pediu R$ 8 pelas doses de capeta. Filho da puta.

“Epa epa epa! Encontrei aqui mais um jogador, para brincar a gincana de Mentor, o guardião do sabor”. E, pronto, lá foi ele pegar outro trouxa.

Guardei no bolso o troco dos dez contos que havia dado para esse sujeitinho e tentei chegar no outro lado da praça.

***

“Gente, gente, a festa está linda demais! Boa noite Balbinooooos”, falou o animado cantor da banda-baile no que a população respondeu U-huuuuuuu. “Eu não escutei, eu quero ouvir mais alto, BOA NOITE BALBINOS!”, e a galera foi a loucura em um longo grito. “Gente, eu queria aproveitar esse momento para dar aqui o microfone um instante para essa pessoa maravilhosa que, sem ela, nós jamais teríamos esse evento, sobe aqui com a gente, Prefeito, uma salva de palmas gente, uma salva de palmas”…

Notei que era o momento que talvez eu tivesse um pouco mais de chance de chegar camuflado até o carro. Estava enganado. Uma galera já se empoleirava sobre o veículo, assistindo ao prefeito falar. Pior. O vidro traseiro estava quebrado e havia duas frases pixadas na lataria: ASSASSINO DE ANIMAIS e ME LAVE PELO AMOR DE DEUS.

Não tinha o que fazer por ali. A passos rápidos, voltei até a esquina de baixo, onde havia deixado Jacques e Anna. Ele estava faminto e com dificuldades de se locomover. Pensei comigo, mas que cacete esse cara tinha comido meio frango assado não tinha nem duas horas. O drama não tinha fim.

Me lamentei pela missão que havia falhado e fui devolver a chave do carro ao proprietário quando, ao tirar do bolso, caiu a nota de R$ 2 do troco do Mentor. Ao recolhê-la do chão, vi que algo estava escrito em batom vermelho: “Leve seu amigo no Messias Velho”.

***

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Não fazia ideia do que se tratava esse nome. Mas Anna sim. “Vamos lá, é aqui embaixo, quando a rua acaba é só seguir pela estrada de terra”. Jacques fez uma cara de sofrimento, como se estivesse sobrevivendo ao Cerco de Leningrado. Perdi um pouco os estribilhos e lhei dei um carreirão para ir mais rápido.

Messias Velho morava em uma pequena casa de barro que surgia de uma roça de milho bem fechada. Eu caminhava com muita cautela pois, além de ser a propriedade alheia, não fazia a menor ideia do porquê de termos sido enviados para lá.

Ele estava nos esperando na porta do local. Era um senhor negro, muito alto, devia ter quase 2 metros, com o rosto e os braços todos marcados. Anna disse que havia uma lenda de que ele havia sido escravo. Não duvidei… Aparentava sim ser centenário. Vestia uma camiseta bastante rasgada, parecia um pano de chão. Usava um shorts curto de tecido brim que deixava aparecer um pedaço de sua genitália, que pendia ao lado de sua coxa como se fosse uma tilápia morta. Não me lembro de ter visto na vida um cena tão horrorizante.

Messias abraçou Jacques e fez um sinal como se o tivesse abençoando. Ele me cumprimentou também, ocasião em que eu dei um leve passo para trás para não ser tocado pelo seu “pêndulo da vida”.

Ele serviu uma sopa para o casal. Me contentei com uma dose de uma misteriosa cachaça que estava sobre a mesa de madeira. Tinha um gosto horrível, até hoje penso se não bebi água sanitária naquele copinho. Com uma serenidade profunda nos olhos, ele tranquilizou meu amigo: “a cachorra não está morta”. Abracei Jacques e Anna. “Mas os cachorrinhos não vão nascer”. Meu Deus… E agora? Mas ele prosseguiu: “Ela não está prenha. Está gorda de tanta porcaria que jogam para ela comer”.

Finalmente, passadas umas 15 rodadas de bingo na Quermesse de Balbinos, estávamos recebendo uma notícia boa.

Nesse momento, o velho Messias deu um longo e profundo suspiro. “Só que vocês vão ter que pagar pelo que fizeram. A rapaziada vai querer ver sangue para honrar a cadelinha”.

Do lado de fora da casa de barro, um barulho de vozes e gritos. “É aqui mesmo, ó as pegadas deles”. Corri até a janela (que na verdade era um buraco redondo todo e torto na parede) e pude ver a multidão descendo em nossa direção. Eram dezenas. Portavam tochas e lanternas nas mãos, tinha pedaços de pau e um deles carregava um machado. Havia até outros cachorros de rua entre o povo – vieram vingar sua companheira vira-latas. Quando querem, os caninos são uma raça bem unida.

Messias correu até a porta e a trancou. Desesperado, se ajoelhou em uma banqueta de madeira e começou a fazer uma reza misteriosa, em um idioma estranho. Com as mãos abertas, passou a desenhar pirâmides no ar, em um movimento místico, cósmico. Enquanto isso, ficamos perplexos observando o ritual obscuro, alternando a atenção para sua genitália, que pairava em cima do banco como se fosse uma inconsciente jaracuçu-do-brejo.

 

Continua.

Leia a Parte III

Leia também a Parte I

O relato de hoje fica em homenagem ao cabra Cristiano Araújo, que nos deixou de maneira tão trágica no dia hoje. É meu bom… Como narrei aí em cima, eu também já passei por esses Maus Bocados.