Foi você quem me fez assim

A Grande Beleza: Uma homenagem a José Rico feita por Marciano

 

O seu destino foi construído por suas mãos

No último sábado (3), o relógio marcou sete meses da morte do cantor sertanejo José Rico, conhecido como a “garganta de ouro do Brasil” pela Sociedade Brasileira de Otorrinolaringologia, título que dividiu por décadas com seu parceiro e segunda voz, Milionário.

A data quebrada – só casal de namoro novo comemora sete meses de alguma coisa, ô época boa, em que se gasta mais com motel do que com saneamento básico – não teve, obviamente, muitas lembranças na mídia. Mas uma homenagem ao José Rico em especial, feita pelo também cantor e primeira voz, Marciano, diz muito sobre o papel desses músicos em nossa recente história cultural. Além disso, traz um olhar muito peculiar sobre o que é o envelhecimento e o viver da vida.

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O filme italiano A Grande Beleza (2013), ganhador do Oscar de filme estrangeiro, conta a história do escritor Jep Gambardella, que acaba de completar 65 anos de idade de uma existência dedicada intensamente aos excessos da boemia na alta sociedade romana – é um comportamento conhecido na novelle vague como “estar vivendo quenem servente de pedreiro, ou seja, por dia”.

O protagonista Jep, do filme A Grande Beleza andando por um desses lugar velho que tem em tudo que é canto de Roma
O protagonista Jep, do filme A Grande Beleza andando por um desses lugar velho que tem em tudo que é canto de Roma

Culto, rico e sedutor, esse tiozão é um fruto bem típico da atual geração científico-tecnológica. Homens desse perfil depois que os cientistas erraram na fórmula de um novo Gelol™ e criaram, acidentalmente, o Viagra™, tornaram-se indestrutíveis. A mulherada gosta de homens assim, com quem podem discutir uma exposição, um livro. Daí fica você com esse boné de aba-reta tentando arrastar sua mina para campeonato de FIFA na edícula de não sei quem na Vila Mariana. Deus tá vendo.

Em determinado momento da história, o fenomenal Gambardella lança “uma real” impressionante – que naquela altura, ele e seus amigos eram, na verdade, destroços, retalhos, restos de uma vida, que simplesmente se suportavam e amparavam uns aos outros.

Forte não? Somos o que somos ou o que restou de nós até aqui?

Chega a arrepiar né? É que está variando muito o clima e minha pele fica meio zicada mesmo, por isso fica meio ouriçada por qualquer besteira. Dizem que Minâncora™ é bom para isso. Mas é um puta filme, e se liga, A Grande Beleza está lá na Netflix, aproveita.

 

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José Marciano ainda não é Jep. Tem 64 anos e aniversaria no dia 1º de Abril. Nascido em Bauru (uma cidade do interior que fica na região de Pirajuí), fez sucessos na música sertaneja brasileira com sua dupla com João Mineiro (parceria desfeita no início da década de 1990).

Se levarmos em conta os parâmetros dos astros sertanejos dos anos 80, 90 e, mais recentemente, o sertanejo universitário, veremos um homem completamente fora dos padrões. Alto, deve ter mais de 1,80m, suponho, e com um rosto forte, sisudo, com feições quase indígenas. Nas épocas de sucesso da dupla foi adepto do corte de cabelo comprido/mullet, porém, a partir dos anos 2000, alisou os cabelos e adotou um visual entre o indie e o emotional hardcore.

Nas vestimentas, traz um dos mais criativos figurinos da música brasileira – com certeza, é o sertanejo que mais investe em uma iconografia de estilo. Passou a usar batas longas, geralmente brancas ou de cores claras, de um tecido que deve ser a seda, que o aproxima da figura mítica de Dr. Fu Manchu.

Marciano durante apresentação na maravilhosa Quermesse de Balbinos, que foi palco da série Rapsódia de Quermesse, aqui no Homem Benigno (foto: Pirajuí.net)
Marciano durante apresentação na maravilhosa Quermesse de Balbinos, que foi palco da série Rapsódia de Quermesse, aqui no Homem Benigno (foto: Pirajuí.net)

Como compositor, Marciano está entre os grandes com clássicos que fizeram a transição da música sertaneja caipira para a romântica, ainda nos anos 1970, que seriam a gênese para a música sentimental, endossada pela tríade Chitãozinho e Xororó, Zezé di Camargo e Luciano e Leandro e Leonardo (contem quantos “e” tem nessa frase).

Mais recentemente essa maestria foi lembrada na canção de sucesso de Jads e Jadson, Toca aí um João Mineiro e Marciano.

Enfim, pela indumentária e pela música, extremamente apaixonada e desiludida, é possível afirmar que Marciano foi o nosso primeiro emo.

 

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Com constante atividade nas redes ditas sociais, o cantor brindou à websfera com o tributo musical a José Rico em sua página no Facebook, chamada de Marciano Inimitável – na época ele e João Mineiro eram chamados os inimitáveis, tendo em vista o timbre diferenciado da dupla.

Em uma versão inédita, o cantor traz um trecho do seu DVD Marciano Live In Araraquara (2008), em que Milionário e José Rico participam no palco cantando uma das mais belas canções em língua portuguesa: Esta noite como lembrança.

Essa música é uma pepita de ouro desde o seu título. Ela surgia mais ou menos na mesma época em que o Black Sabbath gravava o álbum Paranoid. Seu contexto é totalmente depressivo. Diante do fim de um relacionamento e a inevitável partida da moça, o eu-lírico tem aquela última furunfada antes da separação.

Aos sons dos mariachis como na versão original, o vídeo do show do DVD começa com belas palavras de José Rico, que era de uma eloquência fenomenal. A música começa e, na edição, divide as cenas do show original, acompanhado por uma plateia comportada, sentada em mesas redondas típicas de clubes sociais do interior de São Paulo, com uma nova versão, gravada. Nessa versão, Marciano aparece, emocionado em um estúdio, usando um óculos Oakley daquela linha Ducati™, que vinha com a tag lateral em vermelho.

Em determinado momento do vídeo, enquanto José Rico canta, é possível notar Marciano negando com a cabeça, emocionado pela voz do saudoso ídolo, brilhando em uma de suas mais belas composições.

Estaria ele emocionado pela ausência do companheiro músico, ou, como o escritor Jep Gambardella, pensando na rapidez do passar dos dias e anos e em como é inevitável a despedida. Ou, como o próprio Marciano escreveu nessa mesma canção:

Agora resta partir, vida minha.

Aliás, sonho em entrevistar o grande Marciano, quem sabe ao ler este sincero ensaio, não consiga uma oportunidade. Agora, chega de baboseira, feche os olhos e aprecie essa magnífica homenagem:

 

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