Não saberia dizer exatamente o ano, mas foi na mesma época em que se passa essa série maravilhosa, Stranger Things, no Netflix, com uma trama toda cheia de referências a clássicos dos anos 1980 e blá blá blá.

EXPERIÊNCIA MULTIMÍDIA: Leia o relato com a música abaixo como trilha

 

Nosso vizinho, bem mais jovem, desceu gritando “pelo amor de Deus, tem um ovni na linha do trem”. Minhas almas, larguei meus hominhos do Comandos em Ação™ tudo no chão e sai correndo para a esquina da vila, para ver o objeto-não-identificado.

Esse bairro em Pirajuí era (e é) bem pequeno e simpático. São nove ruas, batizadas com nomes dos pioneiros do município (todos bandeirantes, não a emissora), mas que foram eternizadas pelos seus números. Quem vem da cidade para o bairro, chega na rua 9 – o último trecho é a rua 1, que interliga com o campinho de futebol. Após o campo, há uma estrutura de concreto, cheia de bambuzais ao redor, onde está a linha do trem que abrigava, naquele momento, o UFO. Depois desse trecho já é a zona rural e após, sei lá, uns 4 km, estão duas penitenciárias. Aliás, esse bairro foi criado no final dos anos 1970 para ser moradia de funcionários dessas cadeias.

“Corre, vem ver a luz, está ficando maior”. Quando cheguei na calçada de casa, morávamos na rua 7, já era possível ver uma pequena muvuca se aglomerando na esquina.

Incrível, da ponta da rua dava para enxergar, sim, um pouco acima da linha do trem, aquela forma arredondada, meio laranja, meio amarela, meio vermelha. Crianças choravam, minha vizinha dona Helena puxou uma Salve Rainha. “Salve Rainha, mãe da misericórdia, vida, doçura, esperança…”. Nessa época eu ainda estava no primeiro ano do catecismo e só sabia rezar essa oração até esse trecho. Para falar a verdade, até hoje ainda não tenho certeza como se rezam umas duas partes, tipo aquele momento do Hino Nacional que geral dá uma sussurrada.

Quem avistou esse treco aqui na vila? “Foi o Pí”, me responderam.

Claro, só poderia ter sido o Pí. Pí era o apelido de um vizinho muito silencioso, que todas as noites ficava na esquina, com um rádio de pilha nas mãos. Foi ele quem avistou a “Coisa Estranha” e teria apenas apontado o dedo para o fenômeno. Desde então, ele havia atravessado a vicinal que margeava o bairro, subido em um barranco e, lá de cima, no pasto escuro, passava a continuar a observar, imóvel, a aparição.

Já começava a anoitecer. Fora do horário de verão, lá pelas 17h50, 18h o escuro já ia tomando conta daquela região. Percebi que, em cada uma das esquinas, havia seu pequeno grupo de pessoas se formando.

Passava um pouquinho das seis quando os ônibus que traziam os funcionários do presídio começaram a descarregar o povo, após o dia de trabalho. Alguns nem desceram para as suas casas, já se juntaram para saber da confusão. “Ué, nós viemos de lá e nem percebemos nada”, indagavam.

Um vizinho meu, Zé Nirão, ainda estava com o uniforme da penitenciária quando se exaltou. “A gente tem que ir lá ver isso”. Algumas esposas foram reticentes sobre a hipótese, solteiras e viúvas concordaram: “Melhor deixar ir”.

A “bola de fogo” continuava por lá, firme e forte. Pegaram rastelos, enxadas, facões. Meu vizinho Romerrô acendeu uma tocha improvisada e foi rapidamente advertido: há postes e luz elétrica até o local, não precisa disso.

Os ânimos foram se exaltando e a impaciência tomava conta do local – já estava quase na hora da novela Cambalacho na Globo e já eram capítulos das últimas semanas.

Decidiram ir ao encontro da luz. Era o que Deus quisesse, literalmente. De mãos dadas, as senhoras mais antigas do bairro começaram a cantar em tom de lamento: “Não temas, segue adiante e não olhes, para trás, seguuuuuura na mão de Deus e vai”.

“Epa, epa, vocês vão aonde com essa tralha toda?” – indagou, com voz muito sóbria, Wilma, moradora do bairro que acabara de chegar caminhando da cidade, da escola, onde trabalhava como bibliotecária.

É um ET dona Wilma! Lá na linha do trem! Eu gritei, amedrontado.

“Na rua 3 estão falando que são mais de 20 alienígenas, de lá deu para ver”, completou uma vizinha mais adepta da prática tida como telefone sem fio.

Wilma, que era estudada e cética, gargalhou.

“Não é ET coisa nenhuma. É Júpiter. É só o planeta. Li ainda essa semana no Almanaque Abril que era provável que ele ficasse bem evidente no céu por esses dias”.

Todos olhamos para Pí, que havia descoberto a luz. Ele concordou com a cabeça. Era mesmo Júpiter. E logo desceu do barranco – não perdia um capítulo da novela.

Aos poucos todos fomos descendo e voltando para nossas casas.

Wilma seguiu a pé até sua residência, lá na rua 1, satisfeita por ter esclarecido toda confusão. Nós moramos ainda mais uns dez anos naquele mesmo bairro e nunca mais ninguém de outro planeta apareceu para nos visitar.

Essa foto foi tirada de cima da linha do trem, mais ou menos onde a "bola de fogo" foi observada. É possível visualizar as casas, a vicinal e o barranco do outro lado da pista. Cortesia do "Dotô" Newton Oliveira
Essa foto foi tirada de cima da linha do trem, mais ou menos onde a “bola de fogo” foi observada. É possível visualizar as casas, a vicinal e o campinho. Cortesia do “Dotô” Newton Oliveira

 

De fato, a história do Netflix lá é mais interessante, né? Tem a menininha careca, o policial, etc.