Foi você quem me fez assim

Avenida Paulista fechada para carros aos domingos

Centenas de pessoas caminhando ao meu redor (seriam milhares?), aparentemente sem rumo, pela Avenida Paulista fechada para carros aos domingos, em São Paulo. Desde 2015, muito se falou desse bloqueio do trecho para veículos, uma galera meteu o pau outros amaram a iniciativa e outros fizeram selfies comemorativas utilizando produtos obtidos por meio de permutas na plataforma Instagram.
Eu lá estive domingo passado para conferir como era essa manifestação humana nos mais famosos metros quadrados de concreto da América Latina. Fui de coração aberto, queria “viver” a avenida e, de quebra, dar uma olhada nas barraquinhas – sempre tem algum badulaque que a gente pode levar para empilhar no apartamento. Apesar que, sobre essas coisas que a gente compra em camelô, já repararam que elas sempre têm o cheiro de cordas de violão?
O que eu não fazia ideia é que essa proposta de fechar a rua seria muito mais uma experiência musical que qualquer outra forma de expressão artística. Afinal, o que é a arte?

JBS em Chernobill

Logo de cara, no meio da rua, me deparei com uma apresentação da banda Picanha de Chernobill. Já conhecia o som dos caras, que é animal, bem doido mesmo, rockão das antigas, estilo drogaiada pesada. O interessante é que eles têm o visual do hippie, mas não do hippie brasileiro, aquele que ia para o Festival de Águas Claras (em Iacanga, SP) comer cogumelo com Leite Moça direto da bosta da vaca. Não. Eles se parecem com os hippies norte-americanos. Sorte deles que o Tom Wolfe nunca os viu pela rua, certeza que ia querer ficar escrevendo um livro ao melhor estilo experiência lisérgica – a diferença é que, para ele, o adiantamento da editora é em dólar, né benhê!
O som era animal mesmo. Uma vibe bem maluca. Uns tiozão estavam pirando lá na frente ao palco improvisado na calçada. Você podia ver claramente que a última vez que alguns deles haviam mexido o esqueleto foi no baile de formatura do filho caçula. Agora o menino está na Austrália, morando um ano fora. Quando ele voltar vai decidir se prossegue na carreira de Administração ou faz um MBA, algo do tipo.
Umas minas (lindas) se aproximavam sorridentes do público enquanto seguravam um chapéu para receber doações. Tal qual no corredor da missa, dei aquela breve olhada e notei várias notas, a maioria de R$ 2. Pode ser a crise. Pode ser a falta de uma “cultura de dar dinheiro para o músico de rua” na vida do brasileiro. Eu, infelizmente, estava sem grana e, para não mandar um: só tenho cartão, querida, assim que ela se aproximou eu fingi estar curtindo extasiado a apresentação dos caras, ao melhor estilo Matarazzo em Altamont (1969).
Também destaco a apresentação, bem perto dali, do ultra enérgico show de Jonnata Doll & os Garotos Solventes. Com um punk rock evoluído ao melhor estilo Ramones upgrade, a apresentação explodiu a esquina. Para cantar a música Crocodilo (que dá nome ao mais novo álbum da banda), o crooner Jonnata, acompanhado de uns três freaks que por ali perambulavam, imitaram na calçada o tradicional caminhar dos aligatores, rastejando por alguns metros em meio à multidão. Inesquecível.

Em se coreografando tudo dá

Logo ao lado dos picanhas, prosseguindo pela Avenida Paulista, vi algo que tocou profundamente meu coração. Vestidos de vermelho, por volta de 20 jovens, entre homens e mulheres, dançavam uma coreografia que parecia um desses axés underground que habitam as baladinhas de Porto Seguro (BA). A música tinha um batuque lento, um ritmo que era marcado pelo ombro e pernas dos participantes desse flash mob dançante. Um cinegrafista com ares de Roman Polanski registrava, um tanto desapontado, a ação. Ali estava uma pequena câmera móvel e uma principal, em um tripé, ao lado do Polanski, que fazia caras e bocas diante do rebolado alheio. Havia um problema de sincronia ali.
Eu que, graças a Deus, tenho uma certa experiência com dança – principalmente esses estilos de axé que o pessoal fica na praia ensinando, nesses palcos do Band Verão –, percebi algo fundamental: eles não eram dançarinos. Eram pessoas comuns, vestidas de vermelho, no meio da Avenida Paulista, sob os olhos de estranhos, ensaiando uma coreografia filmada.
Não entendi a finalidade dessa dinâmica, mas me fez lembrar uma belíssima máxima de um sujeito de Pirajuí. Conhecido por não ser bom pagador, contrasta essa imagem com vários bens, imóveis, carros e viagens internacionais. Quando questionam o fato de ele ter tudo isso e nunca pagar ninguém, ele responde: gastar, comprar e viajar com dinheiro é muito fácil; difícil é fazer tudo isso que eu faço sem tê-lo.

O bichinho do jornalismo

Ando um pouco mais e vejo uma multidão ensandecida. Sinto um calor dentro do meu peito (o domingo estava ligeiramente frio). É a mesma sensação que sempre tenho quando me deparo com uma fila misteriosa no meio da cidade. Por que será que essas pessoas estão enfileiradas? É algo de graça? Se não for de graça, ao menos deve ser bem barato. Em 2005 eu passava pela região da Rua General Osório, no Centro, quando vi uma misteriosa fila, formada aos pares. Gigantesca. Não resisti e fiquei alguns minutos guardando um lugar ali, apenas para assuntar. Não vai adiantar ficar aí na fila sozinho, me disse o sujeito da frente. Era uma promoção de jaquetas impermeáveis para motoboys (essa rua é famosa pelo mercado de acessórios de moto). Comprava uma e ganhava a segunda, daí as duplinhas.
Pois bem, o que eu via na Avenida Paulista fechada para carros aos domingos não era uma fila, mas um círculo em volta de alguma atração. Dei uma chegada mais perto e fiquei nas pontas dos pés. Eram três sósias do Michael Jackson, cada um vestido em uma fase do finado Rei do Pop. Eram bem jovens, um deles, uma criança, sei lá, nos seus 9, 10 anos. Coreografavam perfeitamente – com especial atenção ao pequenino, que parecia um verdadeiro robozinho, como se Elon Musk tivesse feito uma parceria com a turma do Apollo Theatre.
Ali estavam câmeras mais profissionais. Espera aí, estavam filmando isso para a TV! Meus olhos passam a buscar quem seria capaz de produzir uma peça jornalística (e talvez até ganhar um Pulitzer, por que não?) diante dessa sequência toda. Lá estava ele, o repórter Gérson de Souza, da Record TV.
Muito discreto em meio ao povão que observava os Jacksons, ele parecia realizado, com o olhar compenetrado e uma felicidade sem fim. Mais magro que antigamente, demonstrava estar sentindo um pouco de frio dentro de uma camisa azul marinho.
Nascido em Bauru, na região nossa, o “repórter em extinção”, como descreve o título de sua biografia, ainda mantém os seus ares de “gonzo comportado”, como brilhantemente escreveu o meu compadre @g_jareta nos idos de 2009 aqui neste texto.
Pensei em me aproximar, falar que era de Pirajuí, dar aquela tietada… Antes de fazer qualquer movimento, o pequeno Michael Jackson seu um mini salto e caiu, no solo da Avenida Paulista, com as perninhas abertas, num mini espacate. O povo foi ao delírio entre gritos e palmas. A expressão nos olhos de Gérson, mesmo sem estar na frente das câmeras, era a de que aquele era o dia mais feliz da sua vida. Desisti da aproximação e fui para aquele shopping mais ou menos novo que abriu na Paulista para tomar um café de R$ 11,50 do Starbuque.

Avenida Paulista

Poucos dias após estar vivendo em São Paulo minha amiga Aline me convidou para um aniversário em um bar chamado Drosófila (ainda existe?), na região da Consolação. Como naquela época tudo era novo para mim, fiquei maravilhado com cada detalhe, a decoração, as bebidas, as comidas – até mesmo com o cardápio que era meio de tecido e, num momento de descuido, acabei limpando a boca com o menu.
Saí de lá levemente embriagado e fui para o metrô. Na verdade, me indicaram uma rua e fui subindo. Sem nenhuma programação, caí, sem querer, pela primeira vez, no cruzamento da Bela Cintra com a Avenida Paulista. Já passava das 23h30 e eu tinha um pouco de pressa (morava lá pelos lados do Jabaquara). Assim que tive a noção que estava onde estava, fiquei paralisado sobre as calçadas largas, as faixas gigantes, o canteiro central e aquela imensidão de concreto, vidros, luzes e letreiros dos prédios. Acho que foi ali o momento em que percebi que havia saído de casa. Deixado o interior. Foi uma sensação forte e arrepiante. Mas não foi de medo. Nunca foi. Até hoje, toda vez que por ali caminho, mesmo nessa deliciosa confusão que foi a Avenida Paulista fechada para carros aos domingos, noto que essa sensação, mesmo que apenas uma parte dela, ainda reside em mim.

Foto: Ken Chu – Expressão Studio

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