Foi você quem me fez assim

Furtos em cemitérios decretam o fim da Era do Bronze em túmulos

*Atenção: Os dados, entrevistas e posicionamentos sobre furtos em cemitérios contidos nesta reportagem são do ano de 2014, bem como a gestão dos órgãos públicos citados na matéria.

Em uma noite do final do mês de março de 2014, agentes da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo desconfiaram da atitude de um grupo de pessoas que carregava um desses carrinhos utilizados por catadores de papel. 

Após a abordagem dos dois homens e duas mulheres na região do Bom Retiro, o flagrante: o carrinho levava 29 grandes placas de bronze, provenientes de túmulos, que juntas pesavam mais de 400 kg e que, provavelmente, seriam vendidas como sucata. Entre o material furtado, uma tampa que trazia a inscrição: Jazigo da Família Monteiro Lobato.

Lida assim, separadamente, a ocorrência até chama a atenção pelas circunstâncias e, também, por envolver o local de eterno descanso de um de nossos maiores escritores. No entanto, foi apenas mais um episódio de um problema constante nos cemitérios.

De acordo com um levantamento do Serviço Funerário Municipal, feito desde o início de 2013, há uma média de pelo menos um furto por dia nas 22 necrópoles gerenciadas pela Prefeitura. O Cemitério da Consolação, um dos mais antigos (e belos) do Brasil, reúne um grande número de esculturas e adornos em bronze e, consequentemente, o maior número de peças levadas: um total de 220, no período – um terço de todas registradas.

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Túmulo de Anna Guilhermina Pompêo do Amaral, a Viscondessa de Indaiatuba. Cemitério da Consolação. Foto: Instagram @leo.cipriani

Uma arte de complexidade

O escultor Osni Branco, de 67 anos, viu nas últimas décadas seus trabalhos de arte em túmulos diminuírem 90%. Com mais de quarenta anos de carreira, com trabalhos expostos na Ásia, Europa, América do Norte e Latina, o artista relaciona a redução do uso do bronze aos furtos nos cemitérios, mas também ao custo e à dificuldade do ofício, que reduziu o número de profissionais no mercado. “Os italianos e os alemães já chegaram ao Brasil com essa atividade, os seus filhos aprenderam, mas seus netos não”.

Veio do catolicismo o que Branco chama de “boom na arte estatuária” nos jazigos. Andar pelos corredores de cemitérios mais tradicionais significa se deparar com anjos, santos e santas. Mas é Jesus Cristo que aparece na maioria das estátuas nos túmulos, pregado na cruz, ou caído sob ela, imagem chamada de “Nosso Senhor dos Passos”; ou em pé com os braços abertos, um modelo chamado de “Vinde a Mim”; há ainda a versão com a mão direita levantada, “Acalmando as Ondas”; com a mão esquerda levemente inclinada, no “Cristo Batendo na Porta”; ou então, ainda bebê, montado em um burrinho, ao lado de sua  mãe Maria e o pai José, em um grande modelo de obra chamado de “A Fuga do Egito”.

Essas belas e serenas esculturas vêm de moldes, que por sua vez estão nas fundições. Osni Branco ressalta que o alto preço desse trabalho está na complexidade do trabalho que precede a criação das estátuas. “De maneira geral, uma fundição se divide em dois tipos de profissionais: o que sabe fundir e o que tem o dom de modelar”. Geralmente, o modelador costuma ser um funcionário da equipe do dono da fundição.

O bronze é uma liga metálica, que mistura cobre, estanho e zinco, a  temperaturas superiores a 1.000º C. As estátuas feitas nesse material costumam carregar, além da beleza, a durabilidade e a resistência à corrosão atmosférica.

“O custo desse produto vai levar em conta o valor homem/hora envolvido no processo de fundição, além, é claro, do capital intelectual assinado pelo artista modelador”, ressalta Branco.

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Domitila de Castro Canto e Mello, a Marquesa de Santos. D. Pedro I. Cemitério da Consolação – foto: Instagram @leo.cipriani

Furtos em cemitérios: difícil de vigiar

Os 600 furtos registrados entre o início de 2013 até o presente momento (meados de 2014) nos cemitérios de São Paulo foram percebidos por familiares em visita, por jardineiros e outros profissionais autônomos que prestam serviço no local. O Serviço Funerário Municipal relaciona a dificuldade em prevenir esse tipo de crime com “o imenso espaço geográfico e as diferentes saídas, que tornam os espaços vulneráveis, mesmo com a ronda da Guarda Civil”, relata o e-mail enviado pelo órgão à época.

A GCM possui uma equipe fixa de vigilância nos cemitérios do Araçá, Consolação, São Pedro, Saudade e Tremembé. Outros quatro possuem câmeras interligadas à Central de Telecomunicações e Videomonitoramento do órgão: Consolação, São Paulo, Quarta Parada e Vila Mariana. No entanto, todas as necrópoles são atendidas por rondas diárias em “horários estratégicos”.

Em nota, a Guarda Civil afirmou ter feito, só no primeiro semestre de 2014, mais de 15,2 mil rondas em cemitérios e velórios do município, em cinco turnos de horários diferentes.

A vigilância mais ostensiva está entre as medidas preventivas solicitadas pelo Serviço Funerário Municipal, que também investiu na iluminação, com a troca dos postes internos. Para o caso do cemitério mais visado, o da Consolação, está em estudo a instalação de lâmpadas com sensores de presença, o que facilitaria a ação durante as rondas noturnas.

Outra medida do SFMSP foi a criação da “Portaria Orientativa”, um documento em formato de arquivo PDF que pode ser baixado na página do órgão na internet. Trata-se de um catálogo contendo 21 modelos de local de sepultamento, com materiais e medidas. “É uma orientação que trata da padronização de túmulos, dá transparência aos procedimentos de construção e reforma e visa proteger os direitos dos concessionários com sugestões sobre parâmetros de preços”, afirma a pasta.  O concessionário é o munícipe que faz uso do terreno, por um determinado período, que pode ser renovado ou não.

Não há em todo material uma referência sequer a produtos em bronze. Pelo contrário, a orientação é para que familiares não utilizem o metal nos jazigos, o que seria, segundo o órgão, uma “tentativa de inibir a ação criminosa e a violação dos túmulos”.

A tampa de bronze do jazigo de Monteiro Lobato, recuperada no início da reportagem, foi furtada novamente do Cemitério da Consolação no final do mês de julho de 2014. Junto com ela, também foi violado o túmulo de um colega das letras, o poeta Mario de Andrade. Até o momento não se tem notícia do paradeiro das peças.

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Cemitério da Consolação. Foto – Instagram: @leo.cipriani

Destino: sucata

Uma placa de túmulo feita em bronze por Renato Lima, 62 anos, proprietário de uma fundição em Belo Horizonte, com medidas de 60 cm de largura por 40 cm de comprimento, com peso de 17 kg, custa em média R$ 2 mil. Uma vez furtado, esse material vai ser levado para ferros-velhos que atuam como receptadores, para serem vendidas a valores que podem variar entre R$ 5 e R$ 10 o quilo, ou seja, cerca de 20 vezes menor.

“Esse pessoal carrega uma marretinha, uma cavadeira, força um pouco a placa e pronto”, afirma o fundidor, que chegou a desenvolver a própria técnica antifurto de instalação em jazigos. O adereço em bronze é fixado com os quatro parafusos virados para o lado de trás, de uma forma que eles fiquem ocultos. “O sujeito tenta forçar a placa por cinco minutos, não consegue e logo já vai procurar outra sepultura”, brinca.

Para Rodrigo Pegoraro, 42 anos, proprietário da fundição que leva o nome de sua família em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, o grande desafio é identificar quem recebe esse material e que faz com que continuem furtando nos cemitérios. “Não há uma quadrilha especializada em furtar túmulos, quem faz isso é o que pega uma peça ou outra e vende para virar sucata”.

Em sua fundição, ele consegue notar que, cada vez que o cemitério da cidade recebe investimentos em segurança, como câmeras e maior vigilância, as placas em bronze voltam a ter mais vendas. Por outro lado, ele nota que quando uma família é vítima desse tipo de furto, nunca mais coloca o material.

Lima, da Renato Placas, de BH, não tem do que reclamar. Às vésperas do feriado do Dia de Finados, que é considerado o “Natal das fundições” em termos comerciais, está prestes a despachar mercadorias para sete Estados. Muitos dos clientes são marmorarias espalhadas pelo país e que terceirizam o serviço que, segundo ele, conta com cada vez menos profissionais no Brasil. “Aqui comigo passaram mais de 20 meninos – só um aprendeu a trabalhar com bronze”.

Ele próprio herdou o ofício ainda menino, de seu pai, que começou a trabalhar como um bico, um complemento salarial e que, logo, se transformaria em uma verdadeira paixão da família. Um trabalho que Lima empresta as palavras de Mario Quintana para transcrever sua admiração pela profissão.

Conta que em 1968, quando a cidade natal do poeta, Alegrete, interior do Rio Grande do Sul, decidiu fazer uma placa em sua homenagem, ele titubeou e disse: “Um engano em bronze é um engano eterno”. A esquiva foi em vão, pois essa foi a frase gravada na placa, e que por lá permanece até hoje.

 

A reportagem sobre furtos em cemitérios foi produzida originalmente em 2014 para a VICE Brasil, porém não foi publicada e, por isso, coloquei ela aqui neste Homem Benigno!

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