I

Dois pombos cinzentos estão com metade de seus corpinhos de pombo mergulhados numa escura poça que corre ao lado do meio-fio. É um misto de caça e brincadeira. Ora bicam a água negra, procurando por algum alimento – só encontram lixo e bitucas de cigarro; ora bicam um ao outro.

Ficam em uma espécie de pequena piscina que um buraco na rua improvisou e que foi totalmente preenchida pelo líquido escuro e imundo. Não são um casal, já que o pombo macho costuma ser visivelmente maior que a fêmea. Também é mais barulhento. Ao seu lado está uma ave ligeiramente menor e mais atrapalhada. As poucas penas que o cobrem somadas a uma cera sobre seu bico, que o deixa amolecido, revelam a relação entre dois: são pai e filho.

II

Estavam voltando à noite do Playcenter de carro quando aconteceu o assalto. Após a separação, eles não mais se viam em todos os fins de semana, porém, uma vez por mês o encontro era sagrado. Sorriam no momento em que o semáforo ficou vermelho.

O ladrão surgiu na porta do motorista do Gol. Em 1994 era um baita carro, de gente que certamente andava com dinheiro no bolso. Estava com roupas largas e não usava nada para esconder o rosto. Anunciou o roubo aos gritos, segurando com as duas mãos um revólver, apontado para cabeça do condutor.

Parado no farol com o pé na embreagem, o pai se assustou com o bandido e soltou o pedal. O carro deu um tranco, quase um pulo seco, para a frente, o motor desligou em seguida. Já era tarde. A arma havia disparado. O filho estava morto no banco do passageiro.

III

Nove anos se passaram até que o juiz assinasse a liberação para o regime semiaberto. Dentro da cadeia, esse tempo passou de forma lenta e vagarosa, entre partidas de futebol e a oficina de costura de bolas de capotão. Agora era a hora de desfrutar da primeira saída temporária fora do presídio, que coincide com o fim de semana do dia dos pais.

Na rua, nove anos correram rápido. O reencontro era ensaiado constantemente, pesquisado em salas de detetives particulares e consultas diárias no site do Tribunal de Justiça.

Mesmo proibido de frequentar esses ambientes no período, não existe um presidiário em saidinha que resista a uma cervejinha no balcão de um bar. Foi ali mesmo que os olhares se reencontraram.

Dessa vez não houve tempo para anunciar assalto nenhum. Da porta do boteco, três tiros vingaram a perda do filho.

A cada disparo recebido na barriga, tentava em vão buscar o caminho da rua, mas só teve vida suficiente para chegar até a calçada. Poucos segundos após a queda, o sangue que saía dos buracos de bala se misturava com a água que escorria ao lado do meio fio. Até assustou os dois pombos que por ali perambulavam.

O pai observava satisfeito a cena, enquanto a população aos gritos chamava a polícia.

 


Conto produzido como exercício para a excelente Oficina de Formas Breves do escritor Ronaldo Bressane, em setembro de 2017, na Biblioteca Parque Villa-Lobos

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