Foi você quem me fez assim

O telefone fixo lá de casa

Uma das primeiras imagens em fotografias de família que carrego na memória tem um telefone fixo retratado. 

Na verdade, não apenas o aparelho. A foto “revelada” trazia o mês e o ano impressos no canto inferior direito (86?) e meu primo Leo, par de anos mais velho que eu, sentado com o telefone na orelha.

Ele está acomodado em um móvel de madeira – uma cadeira que emendava uma mesinha –, com um trançado bege de plástico no encosto e assento. Quando esse trançado estragou meu tio quase teve que ir no Suriname para conseguir quem reformasse.

Afinal, já que era um telefone fixo e com aquele fio enrolado, havia um canto para a pessoa sentar e papear.

A propósito, este móvel saiu da minha tia e está na casa dos meus pais até hoje, para apoiar o telefone sem fio. 

Outras pessoas também têm essa bendita foto falando ao telefone, né? Era como tirar o retrato ao lado do carro nos anos 1970 e início dos 1980 (quem daí assistiu Aquarius?).

Hoje essa fotografia está em minha mente. Curiosamente, na última terça-feira aconteceram três situações envolvendo o telefone fixo em meu dia a dia. 

  1. A primeira delas foi no excelente Comedians In Car Getting Coffee, talk show automotivo do Jerry Seinfeld, agora na Netflix, em conversa com a atriz Sarah Jessica Parker.  Ela comentava sobre como seus filhos jamais saberão as sensações emanadas por um sinal de ocupado no telefone fixo? Lembra? Contou que, às vezes, uma tia vinha pessoalmente procurar por sua mãe. “Minha mãe está ao telefone”, “É claro que está faz 45 minutos que estou tentando telefonar”. 
  2. A segunda situação veio do meu editor em uma das revistas que colaboro. Recebo uma mensagem um tanto desesperada pois ele não consegue “de jeito nenhum” falar comigo. Mais tarde o imbróglio está resolvido – ele ligava no meu telefone fixo, que só existe em espírito. A versão carne quebrou (mau contato na bateria) e nunca mais foi substituída. 
  3. Por fim, meu amigo Patrick Santos, respeitado e premiado jornalista de rádio e executivo de comunicação, que fez história na Jovem Pan e que está em um período sabático, utilizou seu perfil no Linkedin para falar sobre os efeitos (os bons) que a ausência do telefone tem feito na sua vida. Aqui está a pensata
Sarah e Seinfeld sentados em um carro velho seboso falando sobre telefone fixo. (Reprodução)

Será que é o caso de telefonar?

Aqui não estou falando tanto sobre serviços, tipo, “Alô, vocês instalam friso lateral da Ford EcoSport”. Mas sobre relações interpessoais do nosso cotidiano. 

No império do WhatsApp, já reparou que telefonar para alguém tem o mesmo peso de pedir para ficar hospedado no apartamento dessa pessoa durante esse restinho de ano? 

Telefone fixo então, você atende apenas para saber que foi engano ou ouvir a voz do Moacyr Franco vendendo um lote no cemitério para você. Jesus. Se ainda fosse o Silvio Brito eu dava um pouco mais de atenção.

O lance é a mensagem. Rápida. Curta. Precisa. Ok. Se ela vem curtinha e bem redigida eu não preciso nem abrir. “Você não abriu a minha mensagem? Não vi o sinalzinho azul!”. Não precisei abrir. Sem acessá-la, pude ler que você apenas escreveu “Deus lhe pague”.

Já que estamos tão metafísicos, o áudio de WhatsApp, então, é o diabo. 

Fulano está gravando um áudio. Essa mensagem é o anúncio que aí vem bucha (mas não aquelas verde-amarela para lavar louça, aquela vegetal mesmo, dura e ardida feito uma pá de pedreiro). 

Às vezes esse áudio tem dois, três longos minutos. Tal qual o período refratário que acontece após o orgasmo, áudios longos de zap também proporcionam a sua Le Petite Mort.

Meu telefone fixo

Durante um bom tempo, nossa casa tinha um dos únicos telefones fixos da rua. Lembro de uma vez em que o marido idoso da vizinha passou mal e elas correram para ligar no hospital do aparelho de casa.

Não adiantou. O senhorzinho faleceu e foi velado na sala da própria família – e daí veio minha primeira memória da morte. 

Quando meu pai comprou o aparelho, o adquiriu de um conhecido “dono de várias linhas” em Pirajuí. Um cara que fez dinheiro com esse negócio, investindo e passando pra frente, como aconteceu com as videolocadoras em certa época e as pirâmides financeiras.

Para termos o telefone, meu pai avisou que não poderíamos mais ser sócios do Pirajuí Parque Clube, que na época eu ainda era muito moleque para frequentar. E essa foi a troca. 

Depois de algum tempo, o telefone fixo foi popularizado. Acredito que após a privatização, a linha deixou de ser uma verdadeira joia. 

Lembro que mudamos o nosso número (que se mantém até hoje) e que, para consegui-lo, ficamos uns dois ou três dias numa fila – dia e noite. As pessoas se confraternizavam no Jardim no centro de Pirajuí, sentados em cadeiras que traziam de casa. 

Foi uma memória muito sublime da vida em comunidade, até que apareceram com um violão e começaram a berrar aquela música horrível “Afagar a teeeerrrraaaa”

Um causo da era do telefone fixo

Em determinado período da história das telecomunicações de Pirajuí, houve um certo boom de “rádios comunitárias” que, pouco tempo depois, foram fechadas. 

Lembro de um amigo com o vozerão impostado, que ligava aleatoriamente para munícipes da lista telefônica, usando uma trilha musical no fundo e mandava. 

– Quem tá falando? Dona Maria, parabéns a senhora acabou de ganhar um Kit Tra-Mon-Ti-Naaaa! Pode vir buscar aqui nos estúdios da Philadelphia FM. 

Do outro lado da linha a senhora até chorava, emocionada. Finda a ligação eles corriam para a esquina da rádio, camuflados, esperando a pobre ganhadora ir buscar seu prêmio. 

Enfim, eram tantas situações “românticas” da era do telefone fixo. A hora de checar a conta, ligação por ligação, o “impulso único” da internet, a mãe que ouvia as conversas na extensão, o aparelhinho que interrompia a fala após X minutos, a bina, etc, etc. 

A era da telefonia móvel, por sua vez, já apareceu esnobe, mostrando que viria para acabar com toda a leveza dos telefonemas. 

Me recordo de um emperiquitado colega de escola, no Ensino Médio, na escola pública, que apareceu com um gigantesco telefone celular no cinto, com uma engordurada capinha de couro. 

Quanto custa? Como funciona para fazer ligação? 

– Não sei, eu não ligo ele, uso mais pelo status mesmo.

Sua resposta diz muito sobre os dias hoje. 

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