Foi você quem me fez assim

Breve relato sobre David Miranda e os primórdios da Deus é Amor

Em meados de 2011 frequentei, durante um mês, a rua Conde de Sarzedas, no Centro de São Paulo, para uma reportagem sobre o trecho de maior comércio de itens evangélicos da América Latina. Nunca foi publicada.

Por ocasião da morte do fundador da Igreja Pentencostal Deus é Amor, David Miranda, ocorrida ontem (aliás, em texto da também pirajuiense Cristina Camargo), resolvo publicar aqui no Homem Benigno o meu breve encontro com a irmã mais velha da família Miranda, Araci. Ela me contou sobre a fundação da igreja e algumas curiosidades da trajetória de David.

Araci Miranda faleceu poucos meses após essa nossa conversa.

 

***

Araci Miranda acorda bem cedo, antes mesmo dos primeiros instantes da manhã iluminarem o Jardim Japão, na Vila Maria Alta, Zona Norte de São Paulo. Recém-chegada à capital, até pouco tempo vivia em outro cenário, mais campestre, na “terra do tomate”, apelido dado à cidade de Reserva, no interior rural do Estado do Paraná. Para a jornada por uma vida melhor na metrópole trouxe, num primeiro momento, suas grandes paixões: marido, filho e o acordeão – logo depois, viria ainda o resto do clã, como a mãe Anália e o irmão mais novo, David Miranda.

Em novembro de 1953, deixou para trás uma vida ligada ao catolicismo, fruto de uma família historicamente próxima à figura dos padres, para ser batizada em uma igreja evangélica. Na nova religião, tocava sua música, ajudava nos cultos e nas pregações. Em casa, era hostilizada pelos familiares, chocados com a brusca mudança de pensamento. “Falavam: onde já se viu, se misturar com os ‘bodes’ e ‘cabritos’?” Sem falar do irmão, David, que aumentava o volume do rádio nos momentos de oração, em tom de protesto.

A pressão sobre a filha mais velha foi intensa, mas ineficiente. Poucos anos depois, toda a família estava convertida à fé pentecostal. David, ironicamente, desenvolveu exemplar dedicação à nova crença religiosa e logo já trabalhava no apoio ao pequeno grupo evangélico que se formava.

No ano de 1961, os Miranda ainda ocupavam a mesma casa e os momentos finais de cada noite eram preenchidos no lar, cada um em seu quarto, com a bíblia nas mãos, em intenso estado de oração. Num desses dias, sozinho em seu canto, David Miranda havia perdido a noção de quanto tempo estava a orar. Já passava das 2h50 quando foi interpelado por uma voz, tão sólida e forte como o som de muitas águas. “Meu servo, não temas as lutas, pois te escolhi e grande obra tenho a fazer por teu intermédio”.

A manhã seguinte foi única naquele lar. O jovem acordou a todos com a notícia de que havia recebido o chamado de Deus, para a fundação de uma grande e internacional igreja. “Minha mãe dizia ao meu irmão, ‘mas como?’, naquela época a gente vivia do nosso salarinho”. O fato é que, menos de um ano depois do ocorrido, em junho de 1962, era fundada, praticamente no quintal da família Miranda, a Igreja Pentecostal Deus é Amor.

Araci, seu filho Roberto e David Miranda, em 1958. A família evangelizava nas praças da Sé, República e em bairros da capital (foto: Gravadora Deus é Amor).
Araci, seu filho Roberto e David Miranda, em 1958. A família evangelizava nas praças da Sé, República e em bairros da capital (foto: Gravadora Deus é Amor).

 

Rua Conde de Sarzedas

Com mais de 50 anos de existência, a Deus é Amor desenvolveu, nesse período, uma relação simbiótica com a Rua Conde de Sarzedas, ladeira no centro de São Paulo dedicada ao comércio de produtos evangélicos. Muito diferente da corajosa jovem que decidiu trocar de religião e seguir sua paixão pela música na fé, a Araci Miranda que encontrei exalava um ar sereno, sábio, como aquele que descrevem aos grandes líderes mundiais ou, ironicamente, aos santos.

À época com 81 anos, era difícil encontrá-la. Apesar de possuir seu quartel general na rua Conde, que abriga sua loja, gravadora e casa, ainda cumpre uma apertada agenda ligada à Deus é Amor. Se David foi o missionário responsável pela fundação, a irmã constituiu-se em um importante eixo para a militância, o sustento e a divulgação da causa. Foi ela quem compôs, executou e lançou outros artistas com os principais hinos presentes nos cultos.

Mulheres de vestidos e longos cabelos amarrados em coques assumem, ao mesmo tempo, a função de vendedoras e assessoras da irmã Araci. E é sob seu chamado que ela vem, com um vestido de algodão, em cor escura e estampa florida. O rosto arredondado é desenhado pelos longos cabelos brancos amarrados em um impecável coque. Inseparáveis óculos de lentes escuras, em degradê, dão um ar mais clássico a sua face – e também ocultam o que aparenta ser uma enfermidade no olho direito, sempre fechado. O conjunto completa-se em um sorriso acolhedor, distante o suficiente para saber que não se trata de um familiar, próximo o bastante pra conquistar a simpatia dos que a cercam.

Seu irmão já havia instalado a sede da Deus é Amor na mesma rua, foi quando Araci teve a ideia de abrir a loja e a gravadora dos hinos no local. O primeiro espaço veio em uma galeria na região mais alta, no nº 35, quase escondido no segundo andar entre comerciantes japoneses, vendedores de roupas. Ali não havia prateleiras, nem visibilidade, para os produtos da igreja. Em 1975, Araci se pegou olhando para um espaço localizado no térreo da galeria.

Admirava o movimento dos pedestres na calçada e vislumbrava uma loja no térreo. “Ó meu Deus do céu, que salinha boa”; mais uma vez a figura divina se manifestou na família, uma voz invadiu sua mente e decretou: “vá que você vai ficar seis anos lá”. Araci desceu correndo para falar com o proprietário, Dr. Conrado – “um turco sem muita religião”, recorda – mas ele disse: “daqui há três meses vai cair tudo aquilo ali”. O locatário referia-se a demolição da área, para construção de prédios do Tribunal de Justiça.  Persistente, Araci insistiu na locação e, pouco tempo depois, foi surpreendida por uma visita inesperada de Dr. Conrado. “Araci, esse seu Deus é mesmo forte. A demolição foi adiada”. A derrubada das edificações viria acontecer apenas no início do ano 2000.

Um único dia de vendas no novo espaço foi suficiente para gerar a mesma quantia obtida em um mês inteiro no segundo andar. A loja e gravadora Deus é Amor resistiu os seis anos no mesmo ponto e passou para o nº 237, onde persiste até hoje.

Divulgada à exaustão em programas de rádio pelos irmãos Miranda, bem como nos cultos da IPDA, a rua logo atraiu outros lojistas de outras ramificações evangélicas. “Hoje é tanta gente que ficou até dificultoso atingir o que vendíamos no passado. Muitas lojas possuem a mesma mercadoria, daí o cliente chega e vai procurar o melhor preço”. Mas essa sua fala não é em tom de reclamação ou lamento, pelo contrário, Araci está satisfeita com seu legado – sua trajetória parece ter chegado a um ponto perene.

Irmã Araci se apoia na bancada de CDs – sob sua tutela, já foram gravadas 378 matrizes de músicas religiosas – e se prepara para ir embora, já passa das 17h30 e se aproxima a hora de fechar.

 

***

Sede da Deus é Amor, na região do Cambuci (foto: Wikipamia.org)
Sede da Deus é Amor, na região do Cambuci (foto: Wikipamia.org)

Atualmente a gigantesca sede da Deus é Amor, na avenida do Estado, é uma das maiores do mundo, com 27 mil assentos. A IPDA, de acordo com o Censo 2010, possui 845 mil membros e 17,5 mil igrejas espalhadas no Brasil. É a 9ª maior igreja evangélica no país. (fonte: Wikipédia)

« »