Para um católico fervoroso, conhecer o Vaticano é o mesmo que um aficionado por rolamentos visitar a rua Piratininga, no Brás. É um inigualável sentimento de redenção, devoção e enrolação, com o uso de algumas palavras em espanhol no meio do dificílimo italiano.

Uma viagem ao sagrado que começa logo na descida do metrô em uma das estações mais próximas – Otaviano. O que não deixa de ser um sufoco também, pois o metrô em Roma é um rolo: você não sabe se entrega o bilhete, se guarda caso eles peçam de novo na saída, se vai para a direita, se desce, se sobe. Pelo menos aqui em São Paulo, se der tudo errado, tem uns sujeitos tocando um piano amador.

Otaviano é um dos nomes do primeiro imperador romano, sobrinho-neto de Júlio César (eternizado em uma de suas mais célebres frases “aooww meu sobrinho”) que, quando chegou à fama, passou a adotar o nome artístico de Augusto.

A distância entre o metrô e a entrada da cidadela deve ter uns 6 quarteirões, que podem ser percorridos pela Via di Porta Angelica, rua estreita, de mão única, com muitos ônibus, em que no percurso todo se observa a muralha à direita, enquanto que um comércio forte de souvenires fica à esquerda. Chega a lembrar um presídio o tamanho do muro – a diferença é que, ao invés de um monte de meliantes, as barreiras ali protegem a história do catolicismo recente e uma cacetada de ouro.

A paisagem é composta de predinhos quadrados com dois, três andares no máximo. Já é possível notar, nas construções, referências ao catolicismo, seja em detalhes ou em imagens de santos reproduzidas em pequenos altares. Além desses indícios, começam a surgir em todos os cantos os protagonistas do Estado o qual estamos prestes a entrar: padres, freiras, vigários, bispos, seminaristas e coroinhas. Eles descem dos ônibus, cruzam a esquina, saem das lojas, passam comendo um gelato, em cima daquelas vespas, dando uma olhada no WhatsApp. Um padre nos seus 70 anos, todo engomado, carrega uma maleta preta, bem formal – seriam documentos sagrados da Santa Sé, me questiono mentalmente. Ele interrompe a caminhada, abre a valise e retira um pacotinho de m&m, volto a me concentrar na viagem e paro de perder tempo com essas besteiras. São tantos, mas tantos religiosos que fariam o colégio de freira que você estudou parecer uma roda de capoeira.

 

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Foi só em 1929 que a cidade-Estado foi para esse canto de Roma. O finado (graças a Deus) Benito Mussolini que mexeu com essa papelada, chamada de Tratado de Latrão. Antes, a sede do catolicismo ficou por centenas de anos numa colina não sei aonde aí. Você calcula a dificuldade desses padres morro acima…

No Vaticano entra-se direto, sem parada. Logo na chegada aos arcos da cidade está uma banca de revistas, com um bando de padres olhando a vitrine atrapalhando a passagem. Ao invés dos anúncios de concurso do Agora SP, eles liam os exemplares do L’Osservatore Romano, um jornal diário que é o instrumento oficial dos discursos do papa, tem também uma versão dele em português, mas eu nunca li, deve falar bastante do catolicismo, né?

Assim que se consegue passar pelo burburinho da entrada, é possível ver esses personagens tão peculiares que compõe a Guarda Suíça. Todos coloridos, possuem um uniforme que mais lembra os pintores renascentistas do que um coronel Braddock. São bem sérios e fisicamente bastante parecidos, o que não significa que fiquem feito estátuas quenem aqueles da rainha da Inglaterra. Eles são o exército do Vaticano e para fazer parte dali, rapaz, é um sufoco – e você reclamando do teste físico para entrar na PM. Aliás, o nome do cargo é porque a escolinha de formação deles é feita na Suíça.

 

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Noooossa Senhora quando se está definitivamente no território do Vaticano você vê a dimensão da coisa toda. É italiano com sombrinha, cansado dos turistas, africanos, um bando de alemão e americano meios deslocados, os japoneses tirando foto, pra variar, os brasileiros naquela alegria, com camisetas em estampas iguais Francisco Uberlâdia-MG te Ama, Comitiva da Fé Conselheiro Mairinck-PR, cantando e rivalizando com o pessoal que está por cima no momento: los argentinos.

Esses sim estão dominando o território, afinal, estão jogando no time da casa né. Ficam lá esperando o Sumo Pontífice aparecer na janela e, quem sabe, reconhecer algum deles lá de cima: “Miguelito, vocês vieram hoje, mas a viagem não seria semana que vem”?

Naquela manhã de domingo, quanto mais o relógio se aproxima do meio-dia, mais a Piazza São Pedro fica lotada de gente. Ela sim, um esplendor, uma arquitetura fortíssima, marcante, um gigantesco espaço que circunda o obelisco, local onde Pedro teria sido crucificado (de cabeça para baixo, já pensou que sufoco). De lá se vê praticamente toda a cidade do Vaticano, a Basílica, as dependências das lideranças, um pouco da entrada dos museus. É coisa linda.

A multidão se aglomera para ver o Papa Francisco que todo domingo ao meio-dia surge na janela para o Angelus, uma leitura que relembra o dia que um anjo apareceu na residência de Maria sem marcar horário, mas era por uma boa causa: a anunciação.

Eu já estava um pouco cansado, como não entendia muito bem o idioma, tinha a impressão que o horário do Angelus era 8h da matina, ou seja, fiquei umas quatro horas ali no veneno sapeando com a turma que surgia. Puxava conversa com um, com outro, sempre estrangeiro. Brasileiro, nunca. Com esse povo eu converso aqui no Brasil.

Aliás, abri uma exceção. Em meio aquela miscelânea de nacionalidades noto um rosto conhecido, tentei puxar na mente se era mesmo a pessoa que imaginava e resolvi arriscar, afinal, ainda que fosse uma bola-fora ali ninguém ia ficar sabendo. Dei uma esticada no pescoço e o chamei: Ô Romero, vem aqui!


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Romero Britto, o artista pernambucano que já é uma celebridade do mundo da arte, não estava sentindo calor. Amado pelos artistas de hollywood e, também, no Twitter, enquanto eu já suava feito uma tampa de marmita naquele mormaço, ele parecia tranquilo vestindo um blazer e uma calça preta, de vinil.

Me apresentei, disse-lhe que estava honrado em conhecê-lo, tamanho o prestígio de seu trabalho, etc. Ele foi super simpático, extremamente humilde e atencioso comigo. “Mas o que você está fazendo aqui pelo Vaticano”, perguntei e ele me revelou que tinha jantado com Vossa Santidade, no que completei “caramba, que legal, Romero! E o Papa, como é que ele está?” E ele relatou que “estava tudo bem sim, graças a Deus”.

O artista estava ladeado de duas belas morenas, altas. No que, gentilmente, ele me apresentou: “This is Marcelo, a friend from Brazil”.

Eu, que não sou nenhum tonto e tenho aí uma noção do inglês, respondi: “Hello, nice-to-meet-you; Are-you-enjoying-Rome?”. Elas responderam que sim.

Troquei mais uma meia dúzia de palavras com o Romero Britto, provavelmente sobre a previsão do tempo, no que percebi algo intrigante. As duas morenas, ao lado, conversavam entre si EM PORTUGUÊS: “Ai, menina! Ainda bem que não coloquei aquela cacharrel senão ia passar calor”. Fiquei sem entender.

Eu e Romero Britto. Na época eu estava enxuto.
Eu e Romero Britto. Na época eu estava enxuto.


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Um canto gregoriano cruza o ar através de numerosas e estratégicas caixas de som. Francisco, o Papa argentino cujo nome secular é Jorge Mario Bergoglio, surge em uma gigantesca janela. O que sai de sua boca e ecoa pelo Vaticano são palavras doces, de fé, progresso e compaixão. Mas confesso que ele fica tão longe e pequenininho que daria para acompanhar melhor se tivesse vendo na Rede Vida.

… Continua?