Foi você quem me fez assim

Meu sofrido adeus à editora Cosac Naify

 

Estava assistindo ao meu episódio diário da novela Fatmagül quando me apareceram com um maldito link do Estadão sobre o fechamento da editora Cosac Naify, responsável pela produção de livros de arte no Brasil. Senti, num primeiro momento, tristeza, depois, reflexão e, por fim, júbilo. Depois, fiquei triste novamente. Não que eu seja um “leitor tipo A”, mas é sempre triste uma notícia dessas. Me corta o coração, até minha pressão subiu. O normal é 12 por 8 né?

Diante do passamento da editora não tive como me distanciar de minha última experiência pessoal ligada à marca – afinal, foi um ocorrido um tanto quanto marcante. Vocês estão muito ocupados agora? Então espera aí que eu vou contar… Só me deixa pegar o trim que eu vou aproveitar para cortar as unhas do pé enquanto conto.

Essa fita rolou em março deste ano. Em casa, logo pela manhã, leio na internet que a editora Cosac Naify ia trocar de galpão físico de estoque. A parada ia para outra cidade e, para desocupar o barracão, fariam uma mega promoção. Até aí tudo bem, não era promoção de uísque, videogame ou caixa de câmbio, era de livro. Eu não ia mexer com isso, estava um sol que começava a esquentar.

Já tinha desistido do assunto quando o meu telefone tocou. Era o tal de @g_jareta. “Ô meu sobrinho, o que você está fazendo?”. Eu disse para ele que estava passando um mata-formiga no meu quintal, mas era só para despistar, na verdade eu estava jogando Candy Crush no notebook. “Então, rapaz, está rolando uma promoção da Cosac e se você fosse lá eu queria esse Os Embaixadores, do Henry James”. Daí eu pensei mas que cacete, eu estou com cara de Estante Virtual agora? Não entendi porque ele estava me encomendando livros, foi quando ele me alertou. O tal galpão que seria esvaziado era no quarteirão de baixo da minha casa.

Oxe, agora então para mim o que seria um sacrifício virou questão de honra: claro que eu iria para essa promoção, pois daí eu poderia contar para todo mundo “fui lá, pô, era na rua de baixo de casa, acredita?”

“Ué, funcionário, mas você não estava matando formigas?”, me perguntou o requerente @g_jareta. Daí eu expliquei para ele que a maioria era saúva, ou seja, já estava praticamente extinta – eu não tinha com o que me preocupar.

Chinelão havaiana, camiseta cavada, bermudão no joelho. Oakley fuel cell™ na testa. Eu tinha que manter um visual que deixasse claro que, na minha cabeça, eu estava indo não a uma livraria, mas à praia.

Dois quarteirões para baixo, lá estava eu defronte a um prédio gigante azul. Deserto. Pensei, cacete o brasileiro não lê livro mesmo, agora é tudo Kéfera e esses povo que a gente assiste no iPad. Aliás, no caminho lembrei que havia um livro da editora Cosac Naify que eu queria comprar: A técnica do livro segundo São Jerônimo. Está vendo? Eu não sou nenhum tonto. Apesar que me decepcionei bastante quando descobri, depois de comprar o livro, que tratava-se do TCC do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns.

Colei no segurança e perguntei se já podia entrar para comprar os livros. “Livro? Aqui não tem livro não, aqui é só rolamento. Livro é ali onde está aquele pessoal”, e apontou para a outra rua, que eu inocentemente havia ignorado.

Eram 9h25, faltavam cinco minutos para que o galpão da livraria fosse aberto. Meu amigo, já havia umas 300 pessoas esperando no lugar. Com um visual lúdico, ali estavam artistas, jovens com tatuagens de flores e com cabelos milimetricamente despenteados, um garoto tocava uma flauta, um homem careca e com o cavanhaque de Lenin estava sentado na posição do pensador de Rodin, pensei “esse é da filosofia”, soube depois que era pedra na vesícula. Esses jovens sedentos pela literatura me olhavam com esse visual praiano e tentavam – em vão – procurar em minhas mãos um isopor onde eu estivesse vendendo água ou cerveja.

Apesar de fuzilado pelos olhos do intelecto, não me intimidei (não se esqueçam que, no truco, eu sou pé do baralho). Peguei o celular do bolso e comecei a atravessar a gigantesca fila falando em inglês (ou algo do tipo). “Yeah yeah ma friend, is all about da books”, disse em voz alta, tentando lembrar dos filmes do ex-marido da Madonna.

A fila partia da rua e fazia curva até uma ruela (na região do Belém há inúmeras pequenas vilinhas particulares). As pessoas se aglomeravam nessa pequena via, encostadas nas casas sem varanda, em que as portas já dão na calçada, até o final, onde já era possível ver um matagal e a própria linha do trem da CPTM.

Me posicionei no final da fila, mas logo dezenas de pessoas chegaram e ampliaram a extensão. Quando o pessoal começou a se aglomerar no meio do matagal, quando os carrapichos começaram a grudar nas capas de couro dos Kindles, eu não resisti e fui lá dar uma organizada: “gente, vamos fazer a volta, gente, por favor. Você vem aqui, puxa a fila de volta para cá. Ô da Laranja Mecânica, você vem aqui também atrás dele, você não é diferente de ninguém. Filme por filme o Velozes deu muito mais bilheteria”.

Passava das 11h30 e a fila pouco tinha andado. Juro por Deus. Uma senhora com bobes na cabeça saiu de casa com uma jarra para irrigar umas tulipas do lado de fora. Uma jovem se ajoelhou e pediu a água para a senhora. Feito um Walking Dead da Cora Coralina, outros repetiram o movimento. A senhora esgotou a água na goela dos meninos e se trancou em casa, assustada.

Nessa hora percebi. Tenho fome. Não tinha nem tomado café, pois não fazia ideia que encontraria tamanha fila. Pensei, vou ali comer e compro uns litros de água para a alegria da turma. Atrás de mim, um sujeito com uma franja no estilo dos Misfits escrevia sem parar num Moleskine. Pedi que ele guardasse meu lugar na fila um pouco pois iria buscar água. Ele assoprou a franja e olhou nos meus olhos uns dois segundos até que a franja caísse de novo e obstruísse sua visão. Não disse nada. Entendi como um sim.

Na esquina havia um boteco completamente tosco. Era um lugar que atendia plenamente o conceito de boteco. Engradados de cerveja vazios se empilhavam na entrada e exibiam uma estufa com salgados que mais lembravam as fotografias do fotógrafo de guerra Robert Capa.

Fiquei com medo dos assados e fritos. Optei pelo tradicional pão na chapa e café preto. O líquido negro era uma urina de égua. A minha vontade era cuspir tudo aquilo na cara do próprio dono do boteco. Mas ali no balcão havia exatamente O INVERSO da fila da Cosac. Ali o mais bonzinho batia na mãe por causa de mistura na Sexta-Feira Santa.

“Você acredita que aquela fila ali é tudo atrás de livro?”, disse um desacreditado. E o outro, “pra você ver o buraco que o Brasil tá se enfiando”. Eu só registrei né, não era de lá. “Olha o pãozinho na chapa”.

Cara, de tanta coisa estranha que rolou naquele dia, eu não imaginava que aquele ali seria considerado o pior pão com manteiga na chapa da minha vida. Ele me trouxe num prato algo úmido. O pão, embebido em óleo, se misturava com a textura da manteiga. Era praticamente uma fatia de queijo catupiry que, com umas duas mexidas a mais na chapa, eu facilmente poderia BEBER O PÃO COM UM CANUDO. Engoli metade do pão, com a coragem do garoto que bebe óleo de rícino. Pedi três litros de água. Acredite você, as garrafas estavam engorduradas e era difícil segurá-las sem que escorregassem feito sabonetes.

Voltei à fila minutos depois e fui recebido como uma missão da ONU em países em guerra civil. Me abraçavam e declamavam poemas – que eu desconfiava serem cópias – enquanto bebiam o líquido precioso. O maninho da fila apenas molhou a mão e ajeitou a franja, carrancudo.

De repente, a fila começou a andar. Andou, andou, andou, viramos a rua, estávamos novamente na rua do galpão! Atrás de mim, outras 300 pessoas já se aglomeravam – e não paravam de chegar. Faltando uns 15 metros para a porta do estoque, fiquei mais ou menos 1h30min parado.

Esses foram os momentos mais difíceis. Nessas horas em que as filas (ou o trânsito, por exemplo) parecem estar infinitamente paradas, despertamos nossos sentimentos mais primitivos. Os olhares de impaciência haviam se convertido em depressão profunda. O sol das 13h era impiedoso. O cheiro da morte estava pelo ar. Depois percebi que estávamos ao lado de um bueiro sujo.

Nesse ponto, podíamos ver as pessoas que, vitoriosas, saíam do galpão, carregando dezenas de livros. “Gente, aguentem aí, vale muito a pena”, disse uma garota com duas sacolas que tinham três vezes o seu peso em cultura! Uma outra menina veio e doou suas pastilhas Halls para a galera, pena que era melancia, blerght. Um típico rei da publicidade, com cabelinho grisalho espetado e óculos de aro negro bem grosso saiu com um ar blasé, com apenas um livrinho pequeno nas mãos. “Eu achei apenas médio”, bocejou. Houve uma pequena tentativa de linchamento. Eu mesmo corri atrás dele e dei aqueles chutes no ar em que você mira para que o chinelo havaiana saia do seu pé e acerte o alvo. Errei.

Quando finalmente entrei no barracão, feito o finado Papa João Paulo II, me ajoelhei e beijei o chão do estoque da editora Cosac Naify. Tinha um gosto de brita.

Diante das montanhas de livros, me deliciava. As obras custavam entre R$ 5 e R$ 45. O que é uma pechincha quando falamos de livros com edições de luxo. Não havia confusão. Não havia brigas. Tinha livro para todo mundo. E gigantescas sacolas. Naqueles minutos, esqueci da fila, da fome e do calor. Ali eu estava diante da criatividade dessa editora e da chance de adquirir essas obras.

Peguei o livro que eu queria, também o título do @g_jareta, alguns infantis para minha afilhada, uma biografia da Gertrude Stein (também para minha afilhada de um ano), um do Cortázar que eu não lembro o nome e um do Enrique Villa Matas, para presentear (A viagem vertical, puta livro).

Como é satisfatória a cultura. Me senti pleno. Pensei, imagina em Cuba que um livro custa o mesmo preço que um Naldecon Gotas. Agora só faltava pagar.

Uma vez que a vida é fruto da matemática. É claro que, para pagar, foram mais TRÊS HORAS de fila.

Saí de casa ainda pela manhã. Trombei uma fila com um bando de doido (inclusive eu mesmo) e estava voltando, a pé, faminto, faltando 15 minutos para as 16 horas. Me deram até assaduras nas virilhas. E agora, o que eu faço? Passo o Cortázar nas coxas como se fosse Hipoglós?

Blasfemei geral. Prometi nunca mais ler um livro. A partir de agora era só YouTube e mangá. Cheguei atrasado no trabalho, me enrolei inteiro.

Até hoje não entendo o por quê de ter ficado tanto tempo nessa confusão. Afinal eu podia ter simplesmente desistido, ligado para o amigo e falado da fila. Mas, sei lá, lendo agora essa entrevista que fala sobre o final da Cosac Naify, recordo que, apesar dos perrengues, algo dentro do meu peito me dizia: “continua, cara, isso daí sempre vale a pena”.

 

*

imagem de capa: São Jerônimo que escreve, de Caravaggio

 

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