Antes que você se pergunte qual a mínima relação entre o livro O Voyeur de Gay Talese e a indústria de caminhões, já me coloco a explicar.

Em uma daqueles antigos LP’s da “fase stand-up” do Chico Anysio, havia uma história espetacular sobre um jogo de futebol na fazenda. A narrativa inteira é maravilhosa, mas a questão do transporte tem um brilho a mais.

Para chegar até o campo dos adversários, arranjaram uma carona precária em uma jardineira velha que mal cumpria seu papel básico. No que brilhantemente Anysio resume na frase:

“Na subida, o time tinha que descer pois não aguentava subir (tínhamos de empurrar). Na descida, não dava para ficar em cima, pois não tinha freio. Enfim: jogar futebol tudo bem, mas precisava trazer o caminhão

Boa, né?

Mas vamos lá… Aos 80 e tantos anos, finalmente o jornalista norte-americano Gay Talese, papa do new jornalism e grife da reportagem a partir de meados do séc. XX, conseguiu o que há 30 anos esperava.

O Voyeur

Lá atrás, Talese recebeu uma carta de um sujeito que afirmava ter comprado um motel com o objetivo de espionar os hóspedes. A tara do cidadão era alimentada por um buraco no teto de um dos quartos, sob um gradil qualquer.

Nesse sótão, o cidadão passou décadas observando a galera que podia estar desde, de fato, amassando o concreto a atos mais solitários (você entendeu) ou tediosos.

Capa original do livro

Além de observar, o Voyeur (como ele mesmo se denomina, na terceira pessoa), passou a relatar em um detalhado (e obsessivo) diário. 

Para o Gay Talese, isso daí era um livro pronto, não é mesmo? Um cara fazendo uma maluquices dessas, com a assinatura do mestre da reportagem, era um prato cheio para qualquer editora.

Pois bem, o Voyeur, de nome Gerald Foos, desde o início dos anos 1980, quando fez contato com o jornalista, deixou claro que só autorizaria a publicação se Talese omitisse nomes e localidades.

O que o escritor sempre se recusou – uma das premissas de sua premiada não-ficção era justamente essa: nunca utilizar pseudônimos ou esconder fatos ou nomes.

Passado um bom tempo, o homem do motel já estava beirando os 80 anos (e o Talese já havia passado dessa idade). Um telefonema deu a entender que era a hora dessa história finalmente vir a público. 

O “produto” seria, inicialmente, um aclamado artigo na revista New Yorker e, em seguida, o livro que está no título desse post, publicado no Brasil pela Companhia das Letras. 

O protagonista engoliu a lua

O Voyeur de Gay Talese teve ainda outros problemas de bastidores. Na semana de seu lançamento, uma reportagem do jornal The Washington Post descobriu uma severa inconsistência.

Após três décadas de troca de correspondência e todo um processo de entrevistas entre Talese e Foos para a confecção da obra, um detalhe primordial havia sido omitido.

O Voyeur não contou que havia vendido seu motel, ainda nos anos 1980. O jornalista ficou louco. Putíssimo que estava, declarou que estava desautorizando o livro.

Rebaixou a reputação do trabalho ao nível de toalete (em grifos meus, um banheiro público de estação rodoviária). 

Também pudera… 

A Netflix “passou” um documentário sobre essa obra. O registro mostra bem como se deu essa confusão toda. No entanto, é fundamental para outro tipo de conclusão, que diz respeito à natureza do personagem.

Aliás, me permita aqui fazer um adendo: não cometam o erro de assistir primeiro ao documentário – priorize o livro! Depois você assiste à produção ou ao seu booktuber de cabeceira. 

Bastante único, Gerald Foos não é um tipo qualquer. Afinal, não é todo dia que vemos um povo subindo em telhados de motel para observar a galera, não é mesmo?

Inseguro. Vaidoso. Volúvel. Esses são alguns adjetivos que podem ser aplicados à figura do protagonista.

Fonte única da história, o sujeito às vezes da aquela impressão de ser um conhecido meu em Pirajuí que não consegue passar cheques em Bauru, porque não o conhecem; mas que também não pode soltar cheques em Pirajuí, justamente porque o conhecem.

Trata-se de um personagem bastante arriscado, vamos colocar assim. A pergunta que fica é: do alto de seus 80 e tantos, terninho impecável (com melhor caimento que o de Neymar Jr.) e chapéu, será que Talese fez bem ao se envolver nessa jornada? 

Casa de Talese: época em que eu trabalhava na Força e Luz em Nova Iorque

Qual a importância de Gay Talese

Para muitos, a faculdade de jornalismo ganha um novo sentido apenas após a leitura de Fama & Anonimato, coletânea de reportagens impecáveis.

Até algum professor sugerir esse livro, a faculdade é basicamente análise de letras de música do Chico Buarque de Holambra e recortes das extintas colunas do então jovem Diogo Mainardi. 

Guerra do Vietnã. Transplantes de coração. Os astronautas. Nenhum desses grandes temas estão no foco do repórter. Sob sua caneta, o vendedor da esquina ganha muito mais relevância e os relatos se transformam em peças valiosas da história comunicação.

Em mais de meio século de reportagem, ele já viu de um tudo – até já perguntaram se ele se incomodava em se chamar “gay”

Há toda uma visão romântica sobre Talese, mas o fato é que, na vida real, não sei se ele seria o repórter ideal para se ter em uma redação. Seria?

O editor não quer um cara que pega uma história e sai para a rua e fica um ano esmiuçando o volume de litros de sucos de laranja consumidos em Nova Iorque nos últimos 40 anos. 

Creio eu que o editor quer um cara que entregue a matéria em uma hora e meia (para pegar outra para tocar), não reclame do plantão de fim de semana e deixe a maldita porta do banheiro masculino fechada. 

Esse vídeo aqui da revista New Yorker mostra o quão especial é o modus operandi do jornalista.

Tema ou forma?

Para mim (na minha U-1000-D opinião) – e isso acontece em O Voyeur de Gay Talese –, o que mais impressiona no legado do jornalista é como ele escreve e, em segundo momento, o que ele escreve. 

Por isso há um problema, já apontado por outros leitores, nesse seu recentemente trabalho. Muito do que está em O Voyeur foi extraído literalmente do diário.

Mesmo que bem escrita, estamos lendo em, sei lá, 70% da obra, a narrativa do próprio Gerald Foos. E aí você bota o leitor numa situação desconfortável (moça tem como chamar a gerência?).

No entanto, é preciso dizer que, quando o texto é do Talese, como sempre, é um show. Em determinado trecho, para explicar que ele estava com a sua família viajando para a Itália no processo de pesquisa do livro Unto The Sons, ele faz uma verdadeira pintura escrita.

O cara que tem um texto como o de Gay Talese é um iluminado. Para fazer referência ao seu lendário perfil do Frank Sinatra, sua escrita sim é uma Ferrari (e com gasolina). 

Por essas e outras, vale a pena a leitura, mesmo que um tanto truncada, de O Voyeur de Gay Talese. Mas levando em conta o estilão do protagonista do livro, a dor de cabeça que ele rendeu ao processo e toda a confusão que ele aprontou o tempo todo, fica a pergunta:

Mas, afinal, precisava trazer o caminhão? 

Trailer do doc disponível na Netflix, pelo amor de Deus leia o livro antes

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